H2FOZ – Cláudio Dalla Benetta
Uma das matérias mais lidas do H2FOZ, no abril que se foi (e continua com boa leitura), é a do barco que reapareceu nas águas do Rio Paraná, na Argentina.
Rio Paraná está tão baixo que navio afundado há mais de um século reaparece
O transporte hidroviário pelo principal rio que corta Foz do Iguaçu é, portanto, um tema apaixonante. Para os antigos, por lembrarem de quando barcos navegavam levando cargas e pessoas tanto pelo Paranazão quanto pelo Rio Iguaçu; para os mais novos, pela curiosidade de saber que os rios eram as melhores "estradas" da época, sem pedágios e com direito a paisagens mutantes.
A propósito, alguns leitores pediram novas fotos do barco centenário encontrado no Paranazão, na cidade de Corrientes, na Argentina. Eis esta, também feita pela Prefeitura Naval argentina, publicada pelo jornal La Nación, de Buenos Aires. Ela dá uma visão do barco vista de cima.
Mas, provavelmente, o leitor está se perguntando: e aquela foto de uma embarcação grande, semi-submersa, perto da Ponte da Amizade? É fake? Não faríamos isso. O H2FOZ sempre procura, ao contrário de publicar notícias e fotos fake, desmentir o que sai por aí, principalmente em redes sociais, quando fatos são mentirosos ou deturpados propositadamente.
A foto foi feita em 2001, pelo fotógrafo Ney de Souza (falecido), que trabalhava para o jornal Folha de Londrina. Ela estampou a capa do jornal, que aproveitou para relembrar os áureos tempos da navegação entre Brasil, Paraguai e Argentina (hoje restrita aos dois países, Paranazão abaixo).
O barco da foto, um cargueiro, tinha afundado naquele local 26 anos antes, em 1975, quando começaram as obras de Itaipu. Só anos depois, em 1982, o reservatório da usina se formou. Uma seca um pouco semelhante à que vivemos deixou o barco à mostra. A história não registra o que foi feito dele, mas provavelmente virou pedaços, ao ser retirado das águas.
Parênteses: O ano de 2001 foi marcado por uma estiagem terrível, no Brasil. O país dependia quase exclusivamente de hidrelétricas, que estavam com os reservatórios quase a zero. Itaipu teve que rebaixar ao máximo seu reservatório pra produzir a energia que o país precisava, mas mesmo assim foi o ano dos apagões.
Na reportagem da Folha de Londrina, publicada em 4 de novembro de 2001, o repórter Emerson Dias lembrou os tempos em que rios eram importantes para o transporte de cargas e passageiros aqui na região, embora a montante não fosse possível, no Brasil, porque o Paranazão sempre teve barreiras (antes, as Sete Quedas, depois a usina de Itaipu), e por isso nunca se avançou no uso de hidrovias.
A região de fronteira viveu uma época de ouro, nos princípios da colonização tanto de Foz do Iguaçu quanto de Puerto Iguazú, na Argentina, e de Presidente Franco, no Paraguai.
Mas a história da navegação, lembra a reportagem, foi anterior à criação dessas cidades. Ela antecede 1880, período em que a extração da madeira e da erva-mate agitava a região já conhecida como 'Tríplice Fronteira'.
O texto do repórter: "Relatos de pai para filho descrevem enormes jangadas, construídas de madeiras nobres como cedro, marfim e ipê. Os troncos eram transportados em grandes carros-de-boi e levados até a margem. As toras eram amarradas, lançadas ao Rio Paraná e rebocadas em direção a Buenos Aires ou Montevidéu".
E mais esta curiosidade: "Na virada do século 20, Puerto Franco era considerado um dos atracadouros mais movimentados da América Latina. Enormes barcos a vapor transitavam pela região, passando também por Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú na Argentina".
Está tão interessante que vamos usar mais um pouco o relato de Emerson Dias: "Até 1930, embarcações traziam turistas e trabalhadores da capital argentina e de cidades do sul do Paraguai. Os visitantes queriam conhecer o agitado porto e as Cataratas, e ainda a casa do cientista suíço Moisés Santiago Bertoni. Ele e Vicente Matiauda, foram os principais fundadores da cidade (de Presidente Franco). A partir de 1939, o primeiro coletivo fluvial começava a circular entre os três países, utilizando os rios Paraná e Iguaçu".
Em fevereiro de 1957, foi fundada Puerto Stroessner, nome que homenageava o então ditador paraguaio Alfredo Stroessner. O nome mudou em 1989, com a queda do ditador. E hoje é nossa vizinha Ciudad del este.
Junto com a cidade, começavam as obras da Ponte da Amizade. As estradas não passavam de picadas. E o rio era o meio mais fácil de trazer material. E leia isto: "A ligação entre as duas cidades paraguaias (Presidente Franco e Porto Stroessner) era feita em kombis. A viagem de apenas sete quilômetros chegava a durar mais de duas horas em dias de chuva".
E mais: "Barcos da Argentina e Uruguai vinham com encomendas das capitais e também da Europa. A chegada dos navios era motivo de festa para a população. Todos se reuniam no porto para receber os turistas, buscar produtos, vender lanches e artesanato".
Na década de 1970, contrabandistas traziam trigo da Argentina, tanto para o Brasil como para o Paraguai. Era o "ouro branco" da época. Hoje, "ouro branco" é outra substância, e já não é contrabando, é tráfico. E nada inocente, já que praticado por quadrilhas especializadas e cruéis.
Mas vamos em frente: "Com o nascimento do comércio em Ciudad del Este, o movimento de Puerto Franco foi definhando. Em 1983, o porto foi fechado, direcionando o trânsito fronteiriço para a Ponte da Amizade", lembra a reportagem.
Tragédias
O transporte por rios na tríplice fronteira também tem registros de tragédias. A maior foi em 1924, quando um navio a vapor, o Santa Cruz, explodiu no Rio Iguaçu, matando pelo menos 120 passageiros. O navio, com 150 passageiros, vinha de Curitiba, com turistas que queriam seguir até a Argentina.
O barco transportava, embora fosse proibido, seis tambores de gasolina. A explosão ocorreu de madrugada, quando todos dormiam. Apenas 30 passageiros se salvaram, alguns com queimaduras graves.
A última tragédia foi registrada em 5 de setembro de 1999, quando o Iguaçu, na região, só era usado mesmo para o passeio de turistas. Um barco com 23 turistas a bordo chocou-se com outro que levava 10 turistas, num dia de inverno em que a baixa vazão das águas estreitava o Rio Iguaçu. No choque, morreram um dos pilotos e seis turistas.
Vale destacar, como conta a Folha de Londrina na reportagem, que a colonização do extremo Oeste do Paraná começou com a vida de pioneiros pelo Rio Paraná – e, depois, pelo Caminho de Guarapuava.
E o turismo? Bem, as estradas não passavam de picadas. "A burguesia curitibana realizava 'safáris', utilizando barcos a vapor para viajar pelo Rio Iguaçu. Turistas, empresários, profissionais liberais e até simples operários utilizavam o itinerário mais conhecido da década de 20", diz o texto.
O parágrafo final da reportagem de Emerson Dias diz: "Na década de 1960, os portos da tríplice fronteira registravam cerca de 130 grandes embarcações atracando todos os meses na região, principalmente em Puerto Franco. Com a inauguração da Ponte da Amizade, o transporte fluvial definhou, juntamente com o comércio de matérias-primas da região. A malha rodoviária se expandiu na década de 1970, e com ela a instalação de empresas importadoras em Ciudad del Este. O contrabando de mercadorias 'made in Paraguay' reuniu as pequenas cidades fronteiriças em uma grande metrópole, sepultando definitivamente os portos dos três países no início dos anos 1980".
Foi o fim de uma era na fronteira.
Pra hermanos, hidrovia é fundamental
No entanto, a hidrovia ainda é fundamental para o Paraguai e Argentina, que transportam principalmente produtos agrícolas (e também importam muito – no caso do Paraguai, especialmente combustível), pelos rios Paraná, Paraguai e Uruguai. O destino são o porto de Buenos Aires e portos no Uruguai.
A longa estiagem na bacia destes três rios, atualmente, está prejudicando o transporte de cargas. Os barcos não podem sair totalmente carregados e a viagem demora bem mais do que o normal.
Falta chuva, muita chuva para repor os índices de água registrados nesses rios, em períodos normais.
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