Mulheres em situação de rua em Foz do Iguaçu: invisibilidade e naturalização

Notadas mais por olhares julgadores e menos pela tão propagada empatia, elas enfrentam vulnerabilidade e exposição.

Com uma lata improvisada para servir de panela, ao fogo sobre dois tijolos, Maria Lúcia Pedroso dos Santos prepara a refeição do meio-dia, dividindo o cozer com cuidados ao cãozinho, a recente e única companhia. Seu abrigo é o minúsculo barraco de lona, que se abre a partir do muro de um terreno gigante no valorizado Jardim Panorama.

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A idade exata, não lembra. “Quarenta e poucos”, repete. Pede para ser chamada de Maria Lúcia, por não gostar do sobrenome. “Criada na roça”, veio para a fronteira aos 5 anos e há mais de 17 perambula nas ruas. Acorda cedo e caminha muito pela cidade a fim de fazer algum dinheiro com latinhas. O banho é no rio. Foi casada e tem filhos. E sonhos.

Essa é a realidade de muitas mulheres em situação de rua em Foz do Iguaçu. São praticamente invisíveis para a sociedade, notadas mais por olhares julgadores do que pela alteridade, tão falada e pouco praticada. À reportagem, nem a prefeitura precisou o tamanho dessa população, indicando números de atendimentos em serviços públicos.

No município, ano passado, houve 6.470 crimes registrados à polícia em que as vítimas são mulheres, segundo relatório da Secretaria de Estado da Segurança Pública. As agressões e violações ocorrem em casa e no trabalho, por exemplo, lugares que deveriam remeter à proteção. Esses dados convidam a visualizar o tamanho do perigo nas ruas.

Maria Lúcia diz não lembrar a idade exata, não lembra: “Quarenta e poucos” – foto: Marcos Labanca

Esse ambiente, de vulnerabilidade e, do ponto de vista numérico, majoritariamente masculino, torna as mulheres ainda mais expostas. Violência que Maria Lúcia diz não temer, mas que conhece bem. Ela já teve de enfrentar um homem que ameaçava uma jovem com machado às mãos, contou.

“Ele parecia que estava louco de raiva e queria matá-la”, relata ao H2FOZ, sobre como ajudou a defender a garota, também moradora de rua. Perguntada por que não procura o serviço de acolhimento, Maria Lúcia não dá muito detalhe. “Porque não, muita gente do governo”, fala, completando que nem mesmo em dias de frio busca o atendimento.

Lata no fogo sobre tijolos para preparar a comida – foto: Marcos Labanca

Com lesões nos braços que parecem fraturas ósseas antigas, a moradora de rua não lembra quando foi ao médico pela última vez, porém reporta que cai muitas vezes e se machuca. Diz gostar das ruas, contudo sonha com outra realidade. “Queria ter minha própria casinha e mais um filho, um filho homem. Voltaria a trabalhar de empregada nas casas”, revela.

Ruas, solidão e silêncio

Cris e 37 anos. Essas foram as únicas informações obtidas após a proposta de diálogo à jovem mulher que caminha todos os dias pela extensão da Avenida Jules Rimet e Rua Mané Garrincha, no Morumbi. Sem mais palavras, o corpo esguio deu as costas e seguiu seu trajeto rotineiro, com uma pequena mochila, blusa e a manta fina, depois de rápida parada no banheiro de um posto de combustíveis.

O H2FOZ localizou pessoas que disseram conhecer Cris, a qual teria familiares na região, inclusive filhos. Pelos relatos, ela passou a ser moradora de rua há pelo menos seis ou sete anos, depois de sofrer possivelmente uma depressão pós-parto. Até então, trabalhava como doméstica para uma família perto da Praça 7 de Setembro.

Cris, caminhada solitária e diária pelas ruas do Morumbi – foto: Marcos Labanca

O andar é firme e o olhar solitário é inflexível, como quem parece querer correr e deixar para trás o peso do mundo ou as agruras da própria memória. A bebida, problema comum para muitos moradores de rua, não permitiu que Cris passasse incólume, apurou a reportagem com moradores do bairro.

Violência está nas ruas

Uma porta aberta de proteção e inserção social, o Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CRAM) atendeu 15 mulheres em situação de rua ou nos acolhimentos, todas vítimas de violência. Os autores, em geral, foram companheiros ou outras pessoas que também estão nas ruas.

“As formas de violência foram as mais diversas”, explicou a coordenadora do CRAM, Kiara Heck. “São desde violências psicológicas às físicas, incluindo a retirada de pertences”, elencou, detalhando que quando a mulher está em situação de violência ela é encaminhada para o acolhimento especializado, que é a Casa Abrigo.

No CRAM, são cinco servidoras públicas para manter o atendimento e mais uma profissional terceirizada. O centro de referência também conta com professoras para cursos e atividades transversais de atendimento, além de manter parcerias com outras instituições, como universidades sediadas no município.

Praça recebe pessoas que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência – foto: Marcos Labanca

Espaços e serviços

O H2FOZ questionou a prefeitura sobre qual é o número de pessoas em situação de rua em Foz do Iguaçu, entre mulheres, famílias e homens. Sem precisar a população total, a gestão informou atendimentos e quais serviços são oferecidos no Centro de Referência Especializado no Atendimento a Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop), em duas casas de acolhimento e no abrigo especializado.

No Centro Pop, uma unidade pública com serviço ofertado para pessoas que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência, de dezembro do ano passado a fevereiro deste, foram atendidas em torno de 300 pessoas por mês, relatou a administração. Nesse período, foram recebidas 43 mulheres, na média, mensalmente.

Os atendimentos de mulheres nos acolhimentos, que são as Casa de Passagem I e Casa de Passagem III, totalizaram 50, pelo balanço da prefeitura, entre dezembro de 2022 e fevereiro de 2023. Esses equipamentos visam ao acesso à rede de atendimento e à convivência familiar e social, reportou o município.

Já o espaço de atendimento especializado, a Casa Abrigo para Mulheres em Situação de Violência e Ameaça de Morte, dispõe de 20 vagas e permite a companhia de filhos. “Funciona diferente das casas de passagem, que são acolhimentos para população vulnerável em situação de rua e/ou em trânsito”, expôs a prefeitura.

Política pública

As ações com mulheres em situação de rua/trânsito ou violência objetivam a autonomia, a autossustentabilidade e a superação da situação de vulnerabilidade e risco, segundo a gestão. “As diretrizes do Sistema Único de Assistência Social estão fundamentadas nos direitos humanos e autonomia, autossustentabilidade e independência do sujeito e não a tutela do estado”, concluiu.

Prédios abandonas de Foz do Iguaçu são usados como abrigo para a população em situação de rua – foto: Marcos Labanca

As ações públicas se baseiam, conforme o município, na política para a população em situação de rua, a qual “envolve mulheres, homens, adolescentes e crianças, sendo cada público atendido em suas especificidades e demandas”. A atuação governamental conta com o Centro Pop, o Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) e o acolhimento no modelo Casa de Passagem.

Equipes técnicas

Cada equipamento possui equipes exclusivas para o atendimento aos usuários do serviço, compostas de psicólogo, assistente social, educadores e cuidadores – esses dois últimos nos equipamentos 24 horas. “Estamos com equipes mínimas no que concerne à legislação específica, aguardando o chamamento do último concurso para contratação de novos servidores [2021]”, citou.

A prefeitura salientou que, em 2020, com a pandemia, aumentou o número de pessoas em situação de rua que nunca anteriormente àquele ano tinham estado nessa condição. Essa circunstância de saúde pública teve impacto social, “o que aumentou a demanda”.

Diz a nota enviada ao H2FOZ que o município conta com um setor específico de educação permanente na Secretaria de Assistência Social, para capacitações diversas. “Porém houve uma descontinuidade no ano de 2020 e 2021, por conta da pandemia”, mencionou a gestão municipal.

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