Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, Foz do Iguaçu ganha seu primeiro quilombo. A Horta do seu Zé e da dona Laíde, situada na Vila C, recebeu, nesta quarta-feira, a certificação da Fundação Cultural Palmares.
Com o reconhecimento, a comunidade passa a ser um quilombo urbano que pertence a Foz do Iguaçu. A área foi ocupada na década de 1990 por ex-moradores do Quilombo Apepú, situado em São Miguel do Iguaçu, a 45 quilômetros de Foz do Iguaçu.
Localizada na bacia do Córrego Brasília, a horta existe há 35 anos e é moradia da família Santos, que mantém tradições culturais e simbólicas adquiridas no Apepú. Nascido em 1941, o patriarca, José João dos Santos, conhecido por seu Zé, faleceu em 2015. Seu legado, porém, teve continuidade com a esposa, Laíde Rufino dos Santos, 79 anos.
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A família dela é formada por 65 pessoas, das quais 11 filhos consanguíneos, um filho de criação, 25 netos e nove bisnetos. Lá vive parte da família, que cultiva hortaliças, cria animais e contribui para a preservação do Córrego Brasília, cujas águas chegam ao Canal da Piracema, situado dentro da Itaipu Binacional.
Laíde diz que a vida dela é a horta. Paranaense de Jacarezinho, ela começou a trabalhar na roça aos 7 anos e tomou gosto. “Agora, estou na liberdade aqui. Vai ser outro Apepú”, afirma.
Uma das filhas do seu Zé, Maria Serrate dos Santos, 55 anos, comemora a conquista. “Para mim significa muito, é a continuidade desta geração, desta tradição e dessa cultura.” Nascida em Cambará, Maria foi criada no Apepú, aonde chegou com 1,5 ano. “Ali, a gente aprendeu tudo que aplicamos aqui hoje”, frisa.
Outra filha da dona Laíde, Vilani dos Santos, 42 anos, tornou-se especialista em fazer receitas com a produção da horta, que é orgânica. Uma das especialidades são as massas com broto de bambu e coração de banana. Ela conta estar contente com o reconhecimento. “Nossa história está sendo vista por mais gente.”
Mineiro de Ubá, José João começou a cultivar verduras no local após obter autorização de um engenheiro da empreiteira Itamon, empresa que trabalhava na época da construção da Itaipu. O excedente da colheita era vendido na obra.
Quando deixou o trabalho na empreiteira, a horta já estava consolidada, e a família passou a viver no local. Após a certificação, a próxima etapa é a regularização quilombola e a delimitação do território.
Reconhecimento da comunidade quilombola
O reconhecimento da comunidade quilombola teve apoio de diversas organizações e entidades, incluindo a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Instituto Federal do Paraná e Defensoria Pública do Estado.
Segundo a professora doutora Cecilia Angileli, do curso de Arquitetura da Unila, o reconhecimento é um grande avanço para a região. “Mais que o reconhecimento, existe um processo muito potente de empoderamento de que eles são quilombolas e existem direitos específicos que precisam ser respeitados.”
A legalização do espaço começou a partir de 2018, quando a Escola Popular de Planejamento da Cidade passou a atuar após uma solicitação de despejo da família que vive ali.
O ação se referia a cinco chácaras, uma delas onde fica a horta, além de 20 casas que não haviam sido retiradas na primeira leva de remoção feita na Rua Aracaju, Vila C.
Conforme Cecília, para iniciar o processo, foi feito um relatório técnico e estudos de histórias de vida da família. A Defensoria Pública do Estado foi acionada e atuou para evitar o despejo.
“Começamos a entender que a resistência e permanência deles ultrapassava uma questão comum de luta por moradia, mas passava pelo direito coletivo de povos tradicionais”.
Ao saírem do Apepú e ao chegarem a Foz do Iguaçu, de acordo com Cecília, a família estava em um processo de aquilombamento.
Entidades apoiam comunidade
Ao longo dos anos, foram feitas várias mediações com a prefeitura, tendo apoio da Defensoria da União, Superintendência de Diálogo e Interação Social (Sudis), Tribunal de Justiça, por meio da Comissão de Conflitos Fundiários entre outros atores. Com uma rede de apoio, houve várias propostas para a permanência da família na área.
Ao longo desses seis anos, segundo a professora, foi realizado um trabalho de defesa de moradia, não necessariamente de defesa de território tradicional, o que ocorreu nos últimos anos.
Assim surgiu a ideia de criação de um parque agroecológico e de uma escola. A prefeitura criou um parque natural na área, e hoje há uma série de mediações para pensar na permanência da comunidade.
Nesse processo, a família foi autorreconhecendo-se quilombola, o que lhe permitiu avançar não só no direito de moradia, mas também de direitos coletivos de povos tradicionais. Foi feita uma sequência de estudos, incluindo laudos históricos e árvores genealógicas do Apepú com a Horta da Laíde.
No ano passado, ainda foram realizados trabalhos para o autorreconhecimento e valorização do patrimônio material e imaterial, envolvendo construção de acervo virtual, linha do tempo, livro de receitas específicas e cordel de história.
Em dezembro do ano passado, foi solicitada a certificação à Fundação Cultural Palmares, cujos representantes visitaram a comunidade em duas ocasiões, sendo a última no dia 31 de outubro deste ano.
Paraná tem 39 quilombos
Em todo o estado do Paraná estão mapeadas 39 áreas quilombolas, uma delas a Apepú, de onde veio a família Santos.
Conforme o Censo 2022 do IBGE, o Paraná tem a segunda maior população quilombola da Região Sul, equivalente a 7.113 habitantes. No país, ainda de acordo com o censo, mais de 30% das cidades têm moradores que se identificam como quilombolas, isto é, cerca de 0,5% da população total do Brasil.
Ainda segundo o IBGE, um terço da população do estado do Paraná é negra e compõe territórios tradicionais ou não no meio urbano e rural.
Boa parte dessa população está instalada ao longo do Vale do Ribeira, passando pela região metropolitana de Curitiba, além de Castro, Ponta Grossa e Jaguariaíva. Registra-se também presença em Guaíra.
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