Casos de bullying e preconceito repercutem em adolescentes e levam jovens a tirar a própria vida
A cada pôr do sol na terra indígena Tekohá Iguassu, o clima é de apreensão. Há décadas vivendo às margens do Lago de Itaipu, no Oeste paranaense, a comunidade avá-guarani convive hoje com o fantasma da falta de perspectiva entre os mais jovens. Casos de bullying, apego demasiado à tecnologia, contato com evangelizadores e moradia em aldeias pequenas mexem com o comportamento da nova geração e levam alguns deles a tentar ou tirar a própria vida.
Registros recentes de suicídios e tentativas preocupam líderes e pajés que desconhecem episódios como esses desde a criação da primeira aldeia, há quase três décadas. De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), de janeiro a junho deste ano, ocorreram 18 tentativas de suicídio e 11 óbitos, a maioria de jovens de até 20 anos, nas aldeias da Região Oeste, que incluem as situadas em São Miguel do Iguaçu, Santa Helena, Itaipulândia e Diamante D’Oeste, todas integrantes do conjunto Tekohá Iguassu. No ano passado, foram quatro suicídios e quatro tentativas. E o problema parece não cessar. Na última semana, foram registradas mais sete tentativas.
Cacique da reserva Tekohá Ocoy, localizada no município de São Miguel do Iguaçu, a 45 quilômetros de Foz do Iguaçu, Silvano Tupavera Centurion, 37 anos, está em busca de ajuda e soluções para acolher os mais jovens. O estopim do problema surgiu neste ano, quando uma adolescente de 13 anos tirou a própria vida. Após o episódio, o cacique e outro membro da aldeia ficaram atentos para entender o que estaria ocorrendo. Procuraram ajuda na Prefeitura de São Miguel do Iguaçu, conversaram com psicóloga, conselheiros tutelares e com professores que dão aula na escola situada na reserva.
Para os guaranis, há algumas hipóteses que podem explicar os casos de tentativas e suicídios, incluindo desde problemas de relacionamento familiar a uma dificuldade de adaptação na própria comunidade. São situações até certo ponto semelhantes às que adolescentes vivem nas cidades.
Silvano lembra que quando estudava ia para a escola a pé, de chinelo. Porém hoje algumas famílias têm condições de comprar sapatos para os filhos, enquanto outras não, o que causa uma diferença social. “Os adolescentes têm vergonha um dos outros”, conta.
O respeito aos pais também é diferente, relata. Antes, a figura paterna e os caciques eram extremamente respeitados. “Hoje, eu, como cacique, quando converso com a juventude, eles ouvem. Mas logo depois pegam o celular e esquecem tudo.”
O acesso à evangelização fora da aldeia também é preocupante porque, de certa forma, ideias difundidas a partir de crenças que não fazem parte do universo guarani confundem os jovens e os amedrontam. Segundo Silvano, dizer que “tem que aceitar Deus e que depois de morrer a pessoa pode ir para o inferno” apavora os jovens, os quais acabam aceitando a religião por obrigação.
Na tentativa de resolver a questão, um grupo se reúne a cada 15 dias para fazer um planejamento pensando em melhorias, o que inclui a construção de ginásio esportivo e oferta de atividades no contraturno escolar.
Casos envolvem crianças e adolescentes
Professor de história da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e estudioso dos guaranis, Clóvis Bringhenti diz que os casos de suicídio e tentativas, antes restritos ao estado de Mato Grosso do Sul, perpassam todas as aldeias do Oeste. Para ele, a pandemia pode ter influenciado a ocorrência de casos, mas esse fato não explica a razão dos suicídios e tentativas frequentes.
No universo guarani, informa o professor, depois da infância chega-se à fase adulta. Os jovens que apresentam esse problema acabaram de entrar na adultidade, ou seja, estão em uma época de transição. Alguns são casados ou namoram.
Como nessa fase os guaranis não se encontram totalmente preparados para conquistar a autonomia de um adulto, eles falam que o espírito não está bem assentado e estão sendo postos à prova. Por isso, acreditam em muitos tratamentos espirituais.
A desesperança também pode explicar a escalada dos casos, afirma o professor. Enquanto na sociedade o homem branco aspira ao sucesso econômico, para os avás a esperança é poder viver no universo guarani. “Mesmo os que trabalham fora querem viver na aldeia. Os índios não acreditam na nossa sociedade”, frisa.
Na Região Oeste, outro agravante é a condição de vida dos indígenas. No Ocoy, por exemplo, vivem 918 pessoas em uma área de 48 hectares, considerada pequena para tanta gente. Entre elas, 420 são adolescentes.
Ministério Público Federal instaura procedimento administrativo
O Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), instaurou procedimento administrativo para acompanhar políticas públicas e grupo de trabalho. O objetivo é conscientizar e criar um canal de comunicação com as lideranças e jovens indígenas para entender e evitar futuros suicídios, relata o órgão por meio da assessoria de imprensa.
O MPF também tem feito reuniões e oficiado diversos órgãos públicos (Funai, Sesai, CRAs, CREs, Conselho Indigenista Missionário – Cimi, entre outros) a fim de acompanhar os trabalhos e, a partir disso, adotar medidas judiciais ou extrajudiciais cabíveis, segundo a assessoria.
Nota do Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Litoral Sul, informa que realiza ações de prevenção e enfrentamento a situações de suicídio nas aldeias de sua abrangência aos indígenas que são atendidos pelo Subsistema de Saúde Indígena (Sasisus) e especificidades da ADPF 709.
As equipes multidisciplinares de saúde indígena (EMSI) têm como função manter a vigilância constante de indicadores de risco das tentativas de suicídio, tais como histórico de outras mortes pela mesma causa na família ou amigos, tentativas anteriores, uso prejudicial de álcool e outras drogas. A atuação das EMSI está em consonância com as diretrizes estabelecidas pelos documentos normativos da Sesai sobre atenção psicossocial. Atualmente, o DSEI possui mais de 500 profissionais de saúde, como técnicos, enfermeiros, nutricionistas, médicos, psicólogos, entre outros.
Os pacientes indígenas que tentaram o suicídio, além de serem acompanhados pelas EMSI, são encaminhados para acompanhamento na atenção secundária à saúde, aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), ao Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF) ou a outros serviços especializados em atendimentos a pessoas com sofrimento mental e/ou com transtornos mentais graves e persistentes.
O DSEI Litoral Sul compreende que o suicídio é um fenômeno complexo, decorrente de várias questões que vão além daquelas relacionadas à saúde física e mental.
No mês de setembro, profissionais do DSEI Litoral Sul organizaram o Encontro Intercultural On-Line, que teve a participação das EMSI da aldeia Ocoy, das equipes de saúde e assistência social do município de São Miguel do Iguaçu e de lideranças indígenas. Foram tratados temas que passam pela questão do suicídio, como o uso do álcool e a importância da atenção diferenciada, com o objetivo de fortalecer as ações intersetoriais e a articulação entre os saberes e as práticas indígenas e os serviços do SUS.
De janeiro a setembro de 2021, ocorreram dois suicídios na aldeia Ocoy. A equipe da Divisão de Atenção à Saúde Indígena e Controle Social do DSEI Litoral Sul compõe um grupo de trabalho cuja finalidade é realizar um levantamento com a comunidade e lideranças indígenas sobre as possíveis causas de suicídios na aldeia.
Saúde mental
Desde 2020, a Sesai ampliou o número de profissionais de saúde mental que desenvolvem ações nas aldeias indígenas e qualificou mais 583 integrantes das equipes multidisciplinares de saúde indígena. Atualmente, são quase cem profissionais de psicologia que realizam apoio e assistência direta aos indígenas e às equipes de saúde no manejo de transtornos mentais, problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas, e ações de prevenção do suicídio.
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