Waldson de Almeida Dias – OPINIÃO
A LUTA contra o preconceito está presente na história desde a época medieval, onde quem não era de origem grega ou romana era excluído. O cérebro humano era suado rapidamente para saber distinguir quem era quem nas referidas sociedades. O cérebro que deveria ser usado em benefício de todos, era excludente.
Muitos chamados de “seres humanos” apresentam o corpo com formato humano, mas no íntimo seus cérebros nutriam e espalhavam o fardo que confunde o passado, tal qual nos fala a escritora estadunidense Maya Angelou. Se não bastasse trazerem o passado a reboque e as características preconceituosas na face, estas mentes eram e continuam sendo uma ameaça constante ao futuro da humanidade. Não entenderam o passado, não compreendem o presente e querem de maneira insana modificar o futuro para que ele se adapte ao formato e tamanho de um grão de arroz, o mesmo tamanho de seus cérebros, enquanto aumentam o tamanho de seus preconceitos.
O Filosofo Voltaire afirmava que “Preconceito é opinião sem conhecimento”. E conhecimento é algo que está faltando muito nas pessoas neste primeiro quarto de século XXI. O conhecimento está diretamente ligado ao estudo, mas estudos sem entendimento de nada valem. Venho falando que entre o momento presente e o começo da inquisição no não tão distante século XII a diferença é mínima. A inquisição foi um movimento político-religioso que censurou, proibiu, queimou, torturou, matou e fez muitas outras atrocidades em nome de uma crença baseada em um só tipo de pensamento e doutrina. Os que não rezavam pela doutrina político-religiosa vigente eram chamados de hereges e aos hereges o fogo, a fogueira e a morte eram a sentença final.
Parece que não avançamos muito em termos de evolução intelectual desde o século XII. Adentramos ao século XXI com pessoas que adotam a mesma forma de pensar e agir do século XII e quando possuidores do poder político-religioso se acham emissários dos deuses a ponto de condenar quem não pensam ou agem de acordo com suas cartilhas repletas de preconceitos. Entre as várias formas preconceituosas que assolam o país e o mundo, uma delas que tem suscitado vários ultrages é a que podemos chamar de “Preconceito Linguístico” ou em outras palavras o preconceito contra a linguagem neutra. Preconceito esse que se caracteriza por acreditarem em um modelo idealizado de língua que se apresenta nas gramáticas normativas em sua grande maioria obsoletas e distante da realidade vigente no país.
Os preconceituosos de plantão afirmam que cabe a eles, do alto de suas pompas e circunstâncias, defenderem a língua portuguesa. Ok! Então que se mudem para Portugal e aprendam que em terras lusitanas um ‘puto na bicha é tão somente um menino na fila’. Se adaptem aos falares da última “flor do lácio”. Ok! Eu explico, “flor do lácio, inculta e bela”, assim o poeta Olavo Bilac se referiu a língua portuguesa no soneto intitulado “Língua Portuguesa”, onde afirma ser a língua portuguesa a última língua derivada do latim vulgar falado na região do Lácio, Itália.
Se Olavo Bilac já afirmava que a língua portuguesa era vulgar ao sair das províncias italianas e ir habitar nas terras de Camões, o que falar quando ela atraca em terras de Pindorama? Ela, a última flor do lácio se torna mais bela e é enriquecida com os falares indígenas, dos negros escravizados, dos colonos aqui importados e o enriquecimento da língua se dá ao natural conforme os tempos avançam. A incorporação de palavras de origens diversas acontece de maneira continua.
No passado os preconceituosos de plantão reclamavam e ainda reclamam dos falares dos negros e precisou aparecer a intelectual Lélia Gonzalez, mulher negra que cunhou o termo “pretuguês” e explicar que ele representa à marca da africanização da língua portuguesa falada no Brasil. Lélia nos ensinou que um cidadão negro ao falar a palavra “Framengo” está expressando a cultura africana em seu “caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo e também a ausência de certas consoantes, tais como o ‘L’ ou o ‘R’. esse aspecto ainda pouco explorado na formação histórico-cultural do continente.” Tudo isso durante séculos foi encoberto pela ideologia do branqueamento e do racismo. Não esquecendo que no Brasil enquanto escravizados e posterior a pseudo abolição da escravatura, os negros não podiam estudar e muito menos frequentar escolas!
“O preconceito é um fardo que confunde o passado, ameaça o futuro e torna o presente inacessível.”
(Maya Angelou)
Agora, século XXI com sombras de obscurantismo, os não tão nobres edis deste país estão preocupados com a chamada “Linguagem Neutra” e afirmam que ela vai “sujar”, “macular” a língua portuguesa, a mesma língua portuguesa que Olavo Bilac disse ser vulgar. A mesma língua portuguesa que recebeu no curso de sua história no país de Pindorama o acréscimo de vários afluentes, rios gramaticais e gotas de palavras que acrescentaram um fluxo maravilhoso e diversificado de falares e saberes. Entre o falar do nordestino e do gaúcho existem milhares de palavras diferenciadas cuja origem e o significado se diferem do português originário do país que nos colonizou e dominou. A percentagem de palavras que falamos no dia a dia de origem africana, indígena e de outros países que contribuíram e ainda contribuem para a transformação de Pindorama em Brasil, são na ordem de milhares e elas somente foram acrescentadas de forma orgânica nos falares dos brasileiros enriquecendo a “língua portuguesa”.
Então pergunto eu, por que implicar com as palavras não binarias? As palavras que não são nem masculinas nem femininas e que podem caracterizar e designar uma gama de pessoas da sociedades que não se identificam claramente em serem masculinas ou femininas? Ou que se identificam e não querem permanecer no binarismo de feminino ou masculino, direita ou esquerda, ser ou simplesmente não ser. Preconceito, respondo eu! São sim pessoas preconceituosas que destilam seus racismos e que querem através de mentiras sobre proteção e preservação da língua portuguesa proibir o uso da linguagem neutra.
A estas pessoas devemos avisar que a língua é viva e dinâmica, não se pode através de uma canetada e um voto dizer como uma cidade, um estado, um país que possuem dez milhões de analfabetos vai falar. Ao invés de criarem programas educativos de qualidade para erradicar de vez o analfabetismo em suas cidades e no país, ficam exalando seus preconceitos contra aqueles que lutam por igualdade em suas escolhas.
A língua é viva e ao ser dinâmica também se encontra em constante movimentação, em constante mudança e adaptação aos novos tempos, assim como sofre o processo de decomposição, ou seja, palavras outrora em constante uso, tais como “Vossa Mercê”, ao longo do tempo se modificaram para “Vosmecê” e hoje é tão simplesmente “Você”. Outras tantas palavras sofreram a mesma decomposição e adaptação, uma tendo a morte total, que hoje somente podem ser encontradas em dicionários antigos.
O tempo, este senhor tão bonito, traz e leva estes constantes movimentos dos falares, dos aprendizados e crescimento de um povo, de um país. Assim como palavras morrem, outras se adaptam e se transformam, outras nascem e muitas são importadas. A era digital quando chegou trouxe o choque cultura de novas palavras: “Delete, internet, e-mail, vlog, blog, on-line e muitas outras que não causaram tanto preconceito e caça às bruxas quanto a linguagem neutra tem causado.
A língua portuguesa em sua natureza é política e socialmente excludente, pois ela atribui gênero a praticamente tudo e todos. Modificar ou ousar modificar essa política que afeta a milhares de pessoas incomoda os ditos poderosos, preconceituosos, racistas, intolerantes quem sabe os remanescentes dos inquisidores do século XII.
O deputado Federal Nikolas Ferreira, quando ainda vereador na capital mineira aprovou um projeto que proibiu o uso da “linguagem neutra” nas escolas de Belo Horizonte. Agora, na condição de Presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, disse que vai pautar o tema do uso da “linguagem neutra”. Em um momento conturbado e preconceituoso em que o Brasil vive, nos dividimos entre nós e eles, ou eles e nós. Recentemente foi aprovado pela Câmara dos Deputados a proibição da utilização da linguagem neutra em órgãos públicos. Junto a um projeto de lei que institui um padrão nacional de linguagem simples em órgãos públicos. Palavras como ‘rachadinha’, ‘desvio de verba’, ‘superfaturamento’, ‘compra de votos’ e outas mais, até o momento não constam na lista de palavras proibidas.
Na esteira do pensamento conservador, autoritário, machista e altamente preconceituoso, muitos edis de muitas Casas de Leis do Brasil, resolveram criar projetos iguais, contra o uso da linguagem neutra.
E aqui vamos usar e falar o “bom português” (contém ironia) estas leis que estão pipocando em vários estados e cidades brasileiras, inclusive aqui em nossa cidade, terra das águas, terra de origem indígena, guarani, fronteiriça a duas nações irmãs que possuem o espanhol e o guarani como línguas oficiais e recebem a influência destes idiomas no seu dia a dia, também tramita um projeto na Câmara de Vereadores que proíbe o uso da linguagem neutra.
Estas leis que proíbem a linguagem neutra nas escolas ou no serviço público, ou nos banheiros ou até mesmo no pensamento dos munícipes, são criadas por pessoas retrógadas e preconceituosas que tentam surfar em uma onda conservadora que nutrem grande desprezo pelas comunidades LGBTQIAPN+, toda uma gama de preconceito e com isso tentam angariar votos conservadores de pessoas em sua maioria incultas, para suas campanhas eleitorais preconceituosas, xenófobas e desprezíveis. A humanidade, os seres humanos, estes ficam em segundo plano tal qual sempre.
Mas, por se tratar de ser a língua minha pátria e ela estar em constante aprendizado e mutação e tal qual Caetano Veloso afirmou, eu também gosto de “ sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões, gosto de ser e de estar. E quero me dedicar a criar confusões de prosódia e uma profusão de paródias que encurtem dores e furtem cores como camaleões. Gosto do Pessoa na Pessoa, a rosa no Rosa e sei que a poesia está para a prosa, assim como o amor está para a amizade. E quem há de negar que está lhe é superior?”. Eles, os edis se acham superiores e acham que suas leis retrógadas podem proibir os falares.
Estamos em uma época de semeadura de palavras e não de preconceitos, sejam eles de que modo forem, dos raciais aos linguísticos. O professor e escritor Antônio Bispo nos ensinou que as palavras devem ser semeadas sim, para acabar com os preconceitos. Pindorama foi invadida pelos portugueses, pelos franceses, pelos holandeses e colonizada por uma gama ainda maior de outros povos, sendo eles trazidos como escravos ou adentrando o país por vontade própria. A marca do colonizador ainda se faz presente na formação de pindorama e em sua mudança para Brasil. Bispo, em seu livro “a terra dá, a terra quer – 2023”, nos adverte que a “guerra de denominações se faz necessária, ou seja, durante séculos o colonizador através de sua fala, de sua escrita e de suas palavras dominaram. Então vamos pegar as palavras do colonizador que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las”. Isso significa que está na hora de abolirmos palavras que através dos tempos oprimem, enfraquecem e nos apropriarmos e até criarmos palavras que coloquem as coisas e as pessoas e os preconceitos em seus devidos lugares.
A escritora, psicóloga, teórica e artista interdisciplinar portuguesa, Grada Kilomba, em seu livro “Memórias da Plantação – 2019”, livro este escrito em linguagem chamada “neutra”, afirma: “Não posso deixar de escrever um último parágrafo, para lembrar que a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, de fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através das suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana.” Somente este parágrafo inicial do livro da escritora portuguesa já diz tudo e coloca nome aos bois, ou seja, os que ainda acham que com uma lei retrógada, burra, irracional, tal como eles, podem exercitar seu machismo, seu poder e sua violência para com as minorias não deixando que elas possuam lugar de fala e escrita.
A escritora portuguesa Grada Kilomba, e quando falo portuguesa é portuguesa de Portugal, entendam senhoras e senhores preconceituosos que defendem a pureza da língua portuguesa tal qual Hitler defendia a pureza da raça. Trata-se de uma nativa do país do colonizador que ainda afirma que é “…importante compreender o que significa uma identidade não existir na sua própria língua, escrita ou falada, ou ser identificada como um erro. Isso revela a problemática das relações de poder e violência na língua portuguesa, e a urgência de se encontrarem novas terminologias.” Ela afirma a necessidade de encontrar novas terminologias e não criarem leis que proíbam as terminologias já criadas.
Acrescento em minha nada modesta e provocante crônica, a fantástica e muitas vezes premiada jornalista e escritora “brasileira”, Eliane Brum, que em seu magnifico e necessário livro “Banzeiro Òkòto – Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo – 2021”, logo no começo do livro afirma: “Neste livro, escolhi buscar a chamada linguagem inclusiva ou neutra, uma busca que responde à necessidade de usar outra linguagem para acolher outras vidas e criar outros mundos. Usei-a sempre que possível, porque ainda estou tateando. Imagino que a maioria vai estranhar e até ficar incomodada no início da leitura, como aconteceu também comigo. Estranhar é preciso. O que não nos provoca estranhamento não nos transforma.”
“Acolher outras vidas e criar outros mundos”, as palavras de Eliane Brum ao mesmo tempo que me comovem me enchem de vitalidade e otimismo, pois não estamos sozinhos nesta luta pelo fim de uma polarização ridícula entre nós e eles, pelo fim do racismo em todas suas formas, pelo fim do preconceito e a derrocada das pessoas preconceituosas e, enfim o abraço a diversidade neste mundo plural em que habitamos.
Acolher o diferente sempre foi e deve ser o primeiro mandamento universal deste planeta em que vivemos. Não adianta ir à Igreja rezar e fazer tudo errado tal como diz a canção, seus e nosso Deus ou Deuses falou e falam de amor ao próximo e para que ele esteja próximo, ou próxima ou ainda ‘proximx’, eu devo chamar tal qual a maneira que a pessoa, o ser ‘humanx’ queira ser chamadx: “Menine, todxs, todes, amigues, elu, namorade e outras tantas palavras já em uso e que ainda vão ser criadas.
A denominação “pessoas gravidas” já é usada na ginecologia, uma vez que pessoas trans também podem engravidar, a isso chama-se neutralidade de gênero.
Antes de finalizar, por hora, meu pensamento, cito ainda a escritora Grada Kilomba quando ela diz: “Parece-me que não há nada mais urgente de que começarmos a criar uma nova linguagem. Um vocabulário no qual nos possamos todas/xs/os encontrar, na condição humana.”.
E finalizo dizendo que eu nasci transgressor! Sendo negro, não me deixei escravizar! Aprendi a ler e leio! Aprendi a escrever e escrevo! Aprendi a pensar e raciocinar e os faço com bastante lógica e discernimento! Diante disso, vou continuar a falar ‘todes’, ‘todxs’, ‘menines’ e todas as demais palavras que humanizarem as pessoas que eu gosto e respeito. E com tudo, todavia, entretanto, a me apropriando das palavras do poeta Mario Quintana, vos falo: “Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão, eu passarinho!”.
Waldson de Almeida Dias é servidor público municipal em Foz do Iguaçu.
Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do H2FOZ.
Todo esse desfile de palavras deveria ser destinado a algum projeto que faça diferença no futuro do Brasil. O que muda se me dirigir a alguém com vossa mercê ou você se continuo dedicando desprezo a essa pessoa? Vamos falar sério neste País? No momento não precisamos levantar bandeiras de minorias, olhe ao seu redor e veja que esta geração está mais integrada ao globalismo que não dá a mínima para preconceitos, pois tudo é um nicho e o problema reside em ter para poder ser. Vamos nos aprofundar em causas mais relevantes que reduzam a desigualdade e permitam o acesso dos menos favorecidos neste mundo de constante mudança. Por favor, gastar milhões com sessões, diárias, alimentação e pousada do Estado para discutir o uso de neologismos, que na verdade querem sim é a imposição de linguagens neutras. Vamos ser mais simples e que cada um use o seu português como lhe convier e pronto. Sugiro esta lei e pergunto se não seria a mais democrática?