Waldson de Almeida Dias – OPINIÃO
NOSSAS VOZES nunca se calaram! Desde que o primeiro ser humano, portador de melanina acentuada foi feito prisioneiro no continente africano e trazido escravizado para as américas, nossas vozes se fizeram ouvir. Ecoaram ainda em terras de África, retumbaram nas travessias oceânicas em tumbeiros fétidos e se tornaram resistência nas senzalas, no tinir das correntes e no ecoar de dor que brotava ao som do açoite.
Nossas vozes bradaram por justiça e igualdade ao longos dos séculos, de Acotirene em Palmares, passando por Ganga Zumba, Zumbi, Dandara e todos que habitavam os quilombos de norte a sul deste Brasil tão desigual, tão escravagista, tão racista e profundamente construído pelas mãos negras, pelo suor dos corpos negros e a dor dos seres humanos escravizados por outros seres humanos.
Luiz Gama, o negro escravizado, o liberto através de seu próprio estudo e conhecimento, o rábula que libertou mais de 500 seres humanos escravizados, o Doutor Honoris Causa pela Universidade de São Paulo – USP, título que recebeu 139 anos após sua morte, escreveu no jornal Gazeta do Povo no dia 28 de dezembro de 1882 um artigo intitulado: “A Emancipação ao Pé da Letra”, onde ele escreve:
“Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam; que esta cor convencional da escravidão, à semelhança da terra, através da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade”.
Um defeito de cor! A frase utilizada por Luiz Gama em sua fala nos remete ao chamado racismo científico que no século XIX afirmava a racialização dos seres humanos, e que “pessoas” negras e indígenas, biologicamente eram inferiores as pessoas brancas em suas constituições, principalmente a que se referia a inteligência. A escritora e pesquisadora, Ana Maria Gonçalves em suas pesquisas nos mostra a existência de uma lei no período colonial brasileiro que dizia exigia dos negros libertos que queriam ocupar um lugar de destaque na Igreja, no exército ou até mesmo na administração da colônia, teriam que escrever ao imperador solicitando a dispensa de seus “defeito de cor”, teriam que “abrir mão” da própria cor da pele, desculpando-se pelo fato de serem negros para que pudessem ocupar algum cargo e ou posto que somente os brancos podiam exercer. Não podemos esquecer que aos negros, tanto cativos quanto aos libertos não era permitido estudarem, não lhes era permitido aprenderem a ler e escrever. Fato que já dificultaria uma escrita ao imperador.
Mesmo após a “Pseudo” abolição da escravidão e aqui eu me utilizo do termo “Pseudo” na acepção correta de seu significado, ou seja, falso, enganoso, cujo conteúdo não corresponde a realidade. A abolição da escravidão no Brasil colocou milhões de seres humanos a sua própria sorte, sem direito a indenização alguma, sem direito a moradia, sem mesmo direito de viver nos mesmos espaços dos brancos.
Condenados a viverem das formas mais humilhantes e degradantes, os “ex escravizados negros” foram desprovidos de tudo que pudesse ser considera humano e digno, até mesmo de suas próprias dignidades.
Na África do Sul, país que sofreu um “Apartheid”, ou seja, termo que se refere a política oficial imposta pela minoria branca do referido país, durante a maior parte do século XX, para com a maioria negra. Na década de 1970, o líder negro sul africano, Steve Biko, cunhou e definiu o termo Consciência Negra. Escreveu Biko: “Em nosso manifesto político definimos os negros como aqueles que, por lei ou tradição, são discriminados política, econômica e socialmente como um grupo na sociedade sul-africana e que se identificam como uma unidade na luta pela realização de suas aspirações. Tal definição manifesta para nós alguns pontos:
– 1.0 – Ser negro não é uma questão de pigmentação, mas o reflexo de uma atitude mental;
– 2.0 – Pela mera descrição de si mesmo como negro, já se começa a trilhar o caminho rumo à emancipação, já se está comprometido com a luta contra todas as forças que procuram usar a negritude como um rótulo que determina subserviência;
A Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação, a negritude de sua pele, e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que só prendem em uma servidão perpétua. Provar que é mentira considerar o negro uma aberração do “normal”, que é ser branco.
Com a energia da luta do povo negro sul africano e na reverberação mundial das palavras de Steve Biko, em 1971, o professor, escritor, brasileiro, gaúcho e militante do movimento negro, Oliveira Silveira, organizou um grupo de estudo na cidade de Porto Alegre, em prol da cultura e da literatura negra. Faziam parte deste grupo pensadores de destaque tais qual: Luiz Paulo Assis Santos, Jorge Antônio dos Santos (Jorge Xangô), Vilmar Nunes, Ilmo da Silva, meu querido amigo Antônio Carlos Côrtes, entre outros. Eles formaram o grupo Palmares que entre outras[1] coisas deliberou que “já passava da hora de romper com a ideia de liberdade concedida, substituindo-a por uma concepção de liberdade conquistada”. Um não ao 13 de maio, data da pseudoliberdade concedida e sim ao 20 de novembro, data da morte do líder negro do Quilombo de Palmares, Zumbi dos Palmares, data de uma liberdade conquistada.
E definiram que: a data de 20 de novembro seria doravante considerada a data do dia da liberdade conquistada, data do dia da Consciência Negra. A luta foi e está sendo árdua. No ano de 2003, foi sancionada a Lei Nº 10.639 que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. No ano de 2011, a Presidente Dilma Rousseff oficializou a data de 20 de novembro, como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Para que seja feriado, os municípios e ou estados tem que possuir leis específicas. Vários estados e municípios já efetuam o feriado de 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra.
O Dia da Consciência Negra, inicialmente, antes de qualquer comemoração trata-se de um dia de respeito! Respeito aos milhões de seres humanos que foram escravizados devido a cor de sua pele, devido a “um defeito de cor”; respeito aos milhões de seres humanos que foram “mortos na travessia marítima”, nos tumbeiros por possuírem “um defeito de cor”; respeito aos milhões de homens e mulheres que sofrem a violência do racismo todos os dias no Brasil, devido a cor de sua pele, devido a possuírem a melanina acentuada, tal qual nos apresentou Lázaro Ramos em seu sensacional filme “Medida Provisória”.
Em 2024, no carnaval, a Escola de Samba Portela, levara para o Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, o tema enredo “Um Defeito de Cor”, baseado no clássico da literatura brasileira, o livro “Um Defeito de Cor” de Ana Maria Gonçalves. O livro conta através da protagonista Kehinde, mulher negra, nascida livre em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de 1810, escravizada, traficada para o Brasil. Kehinde vai adquirir sua liberdade, se torna Luiza Mahim, mãe do Doutor Honoris Causa, Luiz Gama.
Ana Maria Gonçalves, mulher negra, com sua escrita é o pó de ouro que valoriza e resgata a história de um povo que foi apagada, que valoriza e resgata a dignidade de um povo que durante muito tempo foi forçado a pensar que tinha um defeito de cor. E tal qual Ana Maria Gonçalves, temos Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Sueli Carneiro, Lélia Gonzáles, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Djamila Ribeiro, Geni Guimarães, Cristiane Sobral, Maria Beatriz Nascimento, Carla Akotirene, Joice Berth, Midria, Jarid Arraes, Eliana Alves Cruz e eles, Joel Rufino dos Santos, Luiz Gama, Solano Trindade, Cuti, Adão Ventura, Marcelo D´Salete, Silvio Luiz de Almeida, Carlos Assumpção, Oswaldo de Camargo, Oliveira Sobrinho, Jeferson Tenório e muitos outros escritores.
“Eu não quero me confundir com essa sociedade. Eu quero ajudar a criar um novo modelo de sociedade, que parta da fissura, do quebrado. É interessante notar que, na arte japonesa, a fissura valoriza o objeto que se quebrou. Depois de ser restaurado com pó de ouro, o objeto é mais valioso. Nossas vozes e nossas ideias são pó de ouro.” (Ana Maria Gonçalves)
E nas artes cênicas as primeiras atrizes e atores negras e negros da televisão brasileira que abriram caminho para as demais chegarem, as eternas Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Mota, Chica Xavier, Teresa Santos, Milton Gonçalves, Abdias do Nascimento e uma infinidade de estrelas negras que reluzem nas artes cênicas, na música, no jornalismo e principalmente na vida, no dia a dia das grandes e pequenas cidades, cidadãos e cidadãs anônimas que ainda sentem na pele o estigma do “defeito de cor”.
Consciência Negra, distante de ser um “defeito de cor” é a valorização de uma cor, pois preto é uma cor linda e negro é uma etnia que vive, pulsa e se valoriza a cada segundo de sua existência! Possuímos a cor da resistência, a cor da luta, a cor da ancestralidade, a cor que carrego comigo por dentro e por fora e que se ilumina, que brilha e que se empondera todos os dias. Consciência Negra é a dignidade da negritude. É a África raiz pulsando vida e gerando nossa existência enquanto humanidade. Consciência Negra é esperançar…Sempre…
Em 2024, no carnaval, a Escola de Samba Portela, levara para o Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, o tema enredo “Um Defeito de Cor”, baseado no clássico da literatura brasileira, o livro “Um Defeito de Cor” de Ana Maria Gonçalves. O livro conta através da protagonista Kehinde, mulher negra, nascida livre em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de 1810, escravizada, traficada para o Brasil. Kehinde vai adquirir sua liberdade, se torna Luiza Mahim, mãe do Doutor Honoris Causa, Luiz Gama.
Ana Maria Gonçalves, mulher negra, com sua escrita é o pó de ouro que valoriza e resgata a história de um povo que foi apagada, que valoriza e resgata a dignidade de um povo que durante muito tempo foi forçado a pensar que tinha um defeito de cor. E tal qual Ana Maria Gonçalves, temos Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Sueli Carneiro, Lélia Gonzáles, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Djamila Ribeiro, Geni Guimarães, Cristiane Sobral, Maria Beatriz Nascimento, Carla Akotirene, Joice Berth, Midria, Jarid Arraes, Eliana Alves Cruz e eles, Joel Rufino dos Santos, Luiz Gama, Solano Trindade, Cuti, Adão Ventura, Marcelo D´Salete, Silvio Luiz de Almeida, Carlos Assumpção, Oswaldo de Camargo, Oliveira Sobrinho, Jeferson Tenório e muitos outros escritores.
E nas artes cênicas as primeiras atrizes e atores negras e negros da televisão brasileira que abriram caminho para as demais chegarem, as eternas Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Mota, Chica Xavier, Teresa Santos, Milton Gonçalves, Abdias do Nascimento e uma infinidade de estrelas negras que reluzem nas artes cênicas, na música, no jornalismo e principalmente na vida, no dia a dia das grandes e pequenas cidades, cidadãos e cidadãs anônimas que ainda sentem na pele o estigma do “defeito de cor”.
Consciência Negra, distante de ser um “defeito de cor” é a valorização de uma cor, pois preto é uma cor linda e negro é uma etnia que vive, pulsa e se valoriza a cada segundo de sua existência! Possuímos a cor da resistência, a cor da luta, a cor da ancestralidade, a cor que carrego comigo por dentro e por fora e que se ilumina, que brilha e que se empondera todos os dias. Consciência Negra é a dignidade da negritude. É a África raiz pulsando vida e gerando nossa existência enquanto humanidade. Consciência Negra é esperançar…Sempre…
[1] https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/11/dia-da-consciencia-negra-50-anos-liberdade-conquistada-naoconcedida#:~:text=da%20Ag%C3%AAncia%20Senado.-,Origem%20do%20Dia%20da%20Consci%C3%AAncia%20Negra,e%20Luiz%20Paulo%20Assis%20Santos.
Waldson de Almeida Dias é servidor público municipal em Foz do Iguaçu.
Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do H2FOZ.
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