Por Luciana Guedes – Colaboração H2FOZ
CAPÍTULO I
Eteke liuyaki 11 de novembro
O dia da luta – 11 de novembro
Na sexta-feira (11) Angola completou seu 47º aniversário da sua Independência política. 11 de novembro de 1975 foi o dia em que o país declarou a sua emancipação do regime colonial português. A data põe fim à um processo de ocupação e exploração iniciado em 1575, que tinha como principais ações explorar os recursos naturais e promover o tráfico humano (escravatura), que sequestrou entre milhares de seres humanos, o futuro soberano de diversas nações.
Eteke liuyaki, o dia de luta. Me atrevo a escrever na língua umbundu que resistiu aos 400 anos de colonialidade cosmolínguística portuguesa, e é ainda hoje o idioma mais falado na província do Bié, de onde este texto é redigido.
Para conhecer as memórias reais deste dia, conversamos com uma testemunha do que foi o regime colonial à época da transição política. Ela, além de professora desde o ano de 1960, foi a primeira mulher a ocupar o cargo de administrado municipal em toda Angola, a senhora Prescinda Albino Chicomo.
A senhora Prescinda aos seus 80 anos de idade nos conta lembranças difíceis deste tempo, onde o racismo colonial, retirava a dignidade da maioria da população: “Mesmo com cabelo branco como o meu, uma criancinha branca te dava um pontapé e você não podia falar nada. O negro não era muito considerado como somos agora. Nós respeitamos todas as raças no nosso país, mas naquele tempo não era assim. ”, recorda. E continua a me contar: “Também lembro do curso de professores, éramos muitos. Haviam 8 mestiços. O inspetor, quando recebeu a minha prova me perguntou se eu já era professora, e eu disse que sim, que era professora da missão, mas eu queria ser do Estado. Mas como havia um mestiço que tinha nota zero, a minha nota teve que passar para ele poder ser aprovado. Fui para a casa, mas não fiquei insatisfeita. Porque no ano seguinte ainda tornei a concorrer. Neste ano não havia hipótese de me reprovar porque fiquei com 20 (a nota máxima). ”
Histórico
O processo de independência de Angola foi turbulento e tardio assim como todos os territórios que Portugal ocupou na investida colonialista em África. Auto intitulado como Império Colonial, este realizava o domínio coercitivo cultural, mas sobretudo econômico dos territórios designados como Províncias Ultramarinas.
Após a Segunda Guerra Mundial, com a constituição de 1933 e a incorporação do Acto Colonial, a metrópole reforçou o regime e acentua a discriminação racial, na contramão do movimento geopolítico da época. Nesta altura, Angola e os outros países colonizados, como Cabo Verde, Guiné Bissau e Moçambique forneciam os principais recursos econômicos para a ditadura de Salazar.
As duras memórias desta época relatam que para explorar essas riquezas o regime colonial utilizava sobretudo o trabalhado forçado, e mesmo os que tinham algum tipo de pagamento, viviam condições análogos aos tempos de escravidão. O regime, assim como ditava a prática colonialista forjada na península ibérica tinha um recorte racista, vide a criação do Estatuto do Indígena em Angola:
Art. 2º Consideram-se indígenas das referidas províncias os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses.
Aqui o dia 11 amanheceu sem energia no bairro do centro da cidade do Cuito, a capital provincial. O que traz muitas dúvidas sobre as contradições que este país vive, tendo em conta sua posição de destaque como produtor da indústria de combustíveis fósseis.
Para o Ministro de Estado para Coordenação Económica, Manuel Nunes Júnior, é tempo de o continente africano começar a “olhar para dentro” para poder reduzir a atual dependência das grandes potências internacionais. A declaração foi feita na última reunião de ministros da Organização dos Países Produtores de Petróleo (APPO), realizada na última sexta-feira (4/11), em Luanda. A declaração nos aponta sintomas de novas formas de performance colonial sobre África.
MEMÓRIA AFETIVA
Trabalhar com memórias de guerra é um caminho aos afetos e lamentos das pessoas, sentimentos que desconhecemos como pesquisadoras, mas que ainda assim nos trazem incômodo. Pergunto à senhora Prescinda onde ela estava no dia 11 de novembro daquele 1975, e ela me relata que em uma viagem de 3 dias e 3 noites em de regresso de sua província natal, onde poderia reunir-se outra vez com sua família.
“Quando ouvimos a propaganda do outro lado, que quem tivesse que a independência a passar no município que não é dele, nunca mais ia ver família, nós nos pusemos a caminhar!”
Neste caso, “o outro lado” já não era mais o império colonial, como de outrora, eram os próprios compatriotas, que integraram o mesmo movimento nacionalista angolano, e que agora se dividiriam pela disputa interna do país.
Os próximos episódios serão a continuação de memórias de batalhas, infinitas batalhas que hoje já não existem mais. Nosso resgate à este passado acontece mesmo aqui, no Cuito. Estamos sob a principal bacia hidrográfica de Angola, que abriga a nascente de majestoso rio Kwanza, em uma planície com cerca de 72.000km² em forma de coração localizada na região cardíaca deste país.
CAPÍTULO I I
EXUMANDO MEMÓRIAS DE UMA GUERRA SEM VITÓRIA
Por Luciana Guedes e Alejandro Ramirez
Familiares caminhando em direção aos túmulos de entes falecidos, entre risos e abraços alguns rostos se notam mais sérios. Em pleno 2 de novembro de 2022, o aparente descaso com a morte não se comprovava pela existência de um objeto em comum nas mãos de pelo menos um integrante de cada família: Eram as pás, destas que são utilizadas para a escavação de covas. O item que parecia algo macabro a um olhar desavisado, logo seria signo de afeto aos finados daquela fazenda de mortos.
A cena se passava no Memorial Batalha do Kwitu, popularmente conhecido como Cemitério Monumento de Cuito, o município bieno no interior de Angola, onde aconteceu a Guerra dos Nove meses, o episódio mais sangrento da Guerra Civil do país. Esta batalha, que ocorreu no ano 1993, teve como protagonistas as forças do MPLA e da UNITA, fortemente armados e treinados desde a luta pela Independência Nacional. Muitos dos que não sobreviveram dito drama marcial na realidade não pertenciam a nenhuma das equipes combatentes, mas ali foram reunidos com os falecidos comandantes e soldados guerrilheiros, enterrados em um memorial de mártires.
Nossa equipe de reportagem chegou para conhecer o espaço justamente no Feriado de Finados com a intenção de conseguir relatos sobre a batalha, e antes mesmo de entrarmos, fomos facilmente reconhecidos como estrangeiros àquela história, já que chamava atenção as câmeras fotográficas que portávamos, mas principalmente o nosso tom de pele mais claro.
O primeiro interlocutor que se aproximou foi José Matenda, o qual se apresentou como Procurador Adjunto do Tribunal Militar. Muito sorridente, pediu uma foto com a equipe, e com orgulho se declarou neto e representante da família Savimbi. O sobrenome, que seria muitas vezes mencionado pelos entrevistados que ainda íamos conhecer, pertenceu ao general das tropas da UNITA responsável por comandar os ataques que tentavam tomar o Cuito do controle do MPLA.
Perguntamos à José se ele sabia porque o cemitério havia sido construído, ao que ele respondeu: “As famílias estavam dispersas, era preciso reunir a todos”. Então o questionamos como se sentia revisitando este local: “Muita dor e respeito. Esta é a casa mundial, onde todos estaremos um dia e também seremos visitados”, alegou.
Em seguida, nos dirigimos à praça principal do cemitério, onde o monumento que relembra as crianças assassinadas em combate se contrasta com uma espécie de orgulho armamentista. Mais uma vez fomos abordados, desta vez por um trabalhador do local que não quis revelar o nome, operativo há 28 anos segundo o próprio, e que seria nosso guia e companheiro durante todo o trabalho. “Este é mesmo um cemitério de exumados. ”, contou. E nos explicava que “durante a guerra, não tinha cemitério. Era tudo fechado. Estes todos estiveram nos quintais. Familiar se enterrava em casa”.
A Guerra dos Nove Meses, além de ser o momento mais violento entre a UNITA e o MPLA, carrega também a fama de ser a etapa do conflito que impediu a divisão política do país. Foi o que nos argumentou Edson Gunga, professor de Pedagogia e História da Educação, que ali estava para visitar a campa do falecido pai, Felizberto Domingos Gunga: “Huambo cedeu, mas o Cuito resistiu”, defendeu prontamente.
Edson disse não sentir tristeza por ir ao cemitério na data: “É o momento de relembrar o espírito heroico dos nossos pais”. Ele, que foi realizar a vista acompanhado de familiares, dentre eles o próprio filho de 3 anos, nos explicou que as pás de escavação que as famílias traziam serviam para realizar a manutenção das covas, que eram as famílias as responsáveis a realizar este trabalho.
Ele tinha apenas 5 anos nesta etapa do combate, nos relatou que entre suas memórias, se lembra a dificuldade de conseguir comida nessa etapa da guerra, e que muitas vezes as tropas realizavam tréguas para fornecer alimentos aos próprios inimigos. Também nosso amigo guia endossava essa lembrança: “Para comer, tinha que ir nas lavras de Camacupa. Mas era difícil. Você não podia andar daqui até ali que já te acertavam”, lembra.
Depois fomos conduzidos pelo nosso anônimo companheiro ao lugar onde os enterrados se encontram, cada túmulo com um número, mas sem epitáfios ou imagens, nem mesmo cruzes. Foi onde conhecemos a história De Gabriela Dovala, professora de física, e que ali estava trabalhando na cova de sua tia, moradora falecida do número 487. Perguntamos sobre sua história:
“Na guerra, minha mãe se refugiou. Quem cuidou de mim foi esta tia. Ela era uma pessoa muito boa, compartilhava com os outros o pouco que tinha. O dia que ela morreu eu não estava, tinha ido procurar alimento no Kunje. Ela foi baleada no pescoço pelos homens da UNITA no dia 15 de agosto de 1993. No dia 14 de agosto tinha sido o meu primo também assassinado, atingido por um projétil B12. ”, nos contou.
Continuamos a caminhada, enquanto as famílias se organizavam para fazer a decoração e limpeza da morada póstuma de seus entes. O operativo aponta para o túmulo de número 1 e me diz: “Este é do Comandante Cussumo”. Das muitas informações que compartilhava nosso acompanhante, os nomes dos combatentes parecem ser-lhe demasiado familiares. Lhe perguntamos se os havia conhecido, mas ele outra vez preferiu não responder.
Mais tarde nos contaria que daquelas armas expostas, ele já havia utilizado uma em especial, chamada Z.U. “A de dois canos”, apontava o operativo. E acrescentou: “ Já utilizei mesmo. Naquela época, todo filho de homem com 13, 14 anos já atirava.”
Ouve-se um grito: “Essas armas foram as que mataram os seus tios”. É de Idalina Sacumboio, que alerta aos filhos sobre uma lição que ela mesma teve que aprender. Ela aponta para os tanques de guerra que dividem o espaço com mais de 7 mil covas, dentre as quais algumas são de seus familiares.
Uma das administradoras públicas responsáveis pelo processo de construção e de exumação dos corpos que foram transferidos para o cemitério monumento é a senhora Prescinda Albino Chicomo, personagem principal de nosso primeiro capítulo. Ela coordenou a comissão criada pelo governo provincial e trabalhou na obra, que teve início em outubro de 2003:
“Quando a guerra passou o presidente viu que os vivos e os mortos não poderiam viver no mesmo sítio. Primeiro cercaram o lugar com muros, depois a comissão começou a cavar. Eu também entrei nos buracos para cavar para os cadáveres que foram enterrados naquele tempo. Foi difícil.”, relata a senhora Prescinda.
Ela revela que a escolha do cemitério naquele lugar tem relação com a rota de fuga do cerco para a busca de alimentos. “Era a única passagem para as pessoas passarem a noite e irem nas lavras buscar alguma coisa para comer. ”, explica. “Mas mesmo assim, muitos ainda caíram nas emboscadas ali.”, completa.
Se certeza universal sobre a vida é o seu próprio fim, a população de Cuito carrega este saber em suas memórias de forma demasiadamente prematura. Não obstante o luto seja também um componente nesta aparente naturalidade com que os personagens relatam a perda de seus entes. Se a psicologia acredita na fala como uma ferramenta de tratamento de um trauma, contar esta história tem a intenção de contribuir com essa elaboração. Um processo histórico marcado por conflitos sucessivos por mais de 40 anos impõe à esta população um preparo psicológico para lidar com a perda, com a violência, com a possibilidade de deixar de existir. “O resultado da guerra é isso aí que vocês estão vendo, é mesmo as campas”, ele, nosso acompanhante, guia e ex-combatente anônimo, nos disse antes de nos despedirmos.
Luciana Guedes é jornalista.
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