Urnas eletrônicas: aliadas ou vilãs da democracia?

Entremos então nos argumentos que tornam infundada toda essa histeria pseudodemocrática: as urnas não são conectadas à Internet, então são inacessíveis a hackers. Mesmo assim, elas possuem 30 camadas de segurança que protegem o sistema de uma eventual tentativa de invasão.

Por José Elias Castro Gomes | OPINIÃO

Qualquer invento pode tomar rumos que se subvertem à intenção de seu criador. Santos Dumont ficou horrorizado ao descobrir que a máquina de voar que concebera estava sendo usada para fins militares. Já a dinamite criada por Alfred Nobel, que a princípio poderia suscitar uma noção de uso exclusivo para a guerra e a destruição, tornou-se elemento-chave para a abertura de estradas e a construção de diversas obras civis de grande porte que melhoraram a qualidade de vida da população. E com as urnas eletrônicas temos uma trajetória que possa encontrar conexão com inventos que de benévolos adquiriram ares demoníacos? Seriam elas uma invenção bem intencionada e que se subverteu ao objetivo inicial? Ou estariam sendo vítimas de maledicências com fins espúrios?

RECORDAR É VIVER: Galeria Série Especial Urna Eletrônica – Museu do Voto

Estou em posse de um documento que versa sobre os 25 anos da urna eletrônica (estamos indo para o 26º ano, já que foi usada pela primeira vez no pleito realizado no final do ano de 1996). A construção do documento teve a colaboração do Juiz Federal Nicolau Konkel Junior, pessoa que respeito enormemente e que, tenho certeza, não estaria colocando seu nome e reputação em jogo se não fosse por uma ótima razão e com grande conhecimento de causa. É, portanto, um documento que merece respeito e uma leitura atenta. Mas, antes de tratar de seu texto, gostaria de puxar pela memória para retornarmos ao tempo em que as urnas eletrônicas foram implementadas no Brasil.

Urna eletrônica foi usada pela primeira vez no pleito realizado no final do ano de 1996. Foto: TSE

Em 1996, a Internet estava longe de ser o que é hoje e o universo digital era misterioso e temido. Basta dizer que, um ano antes, um filme com Sandra Bullock fez grande sucesso mexendo com as suspeitas da população a respeito da tecnologia: em “A Rede”, a atriz interpreta uma programadora cuja identidade é totalmente alterada no meio digital, legando-lhe uma ficha policial na qual surge como ladra e prostituta. Então, o projeto das urnas eletrônicas foi de uma impetuosidade ímpar, pois poderia contar com a resistência da população mais desconfiada.

Elas foram aplicadas no Brasil pela primeira vez no mesmo ano em que todo o país acompanhou perplexo o “surgimento” do ET de Varginha. Pois então, passaram-se 25 anos e tanto o ET de Varginha quanto a urna eletrônica são temas de discussões acaloradas e teorias da conspiração. Nessa época, os computadores para uso doméstico começavam a virar sensação. Porém, ainda eram muito caros, então se tornavam um sonho de tecnologia e facilidades não muito acessível. Mas se a tecnologia era misteriosa e suspeita, como é que naquela época a urna eletrônica surgiu com baixíssima resistência por parte dos eleitores. Simples: as pessoas hoje não se lembram, mas as denúncias de fraude nas urnas físicas e os chamados votos de cabresto eram extremamente comuns. Então, a urna eletrônica surgia como uma esperança que iria mitigar drasticamente esses males que infernizavam a democracia brasileira.

Feito esse preambulo, vamos para o documento que me chegou em mãos sobre os 25 anos da urna eletrônica. Já em suas primeiras páginas, ele pede cuidado com o crédito que se dá às chamadas “teorias da conspiração” – aquelas que afirmam que o homem não pisou na Lua, que a Terra não é redonda e que a grande maioria das notícias são engodos patrocinados por vilões obscuros e ultrapoderosos como aqueles que vemos nos filmes de James Bond. A constatação é de que estamos em um ambiente onde os extremismos possibilitam discursos ferozes, inócuos e paranoicos, os quais costuram os fatos de maneira a tudo parecer digno de desconfiança, havendo supostas conexões ardilosas a todo momento e em todos os cantos.

O texto adentra na sequência em casos de polêmicas e suspeitas em eleições realizadas com urnas físicas, um deles registrado na primeira eleição direta para governador no período de transição da ditadura militar para o regime democrático (1982), quando as dúvidas e confusões no pleito fluminense consumiram 28 dias de apuração, em um clima de fraude pautado por erros no processamento de votos. Segundo o documento, foram justamente as desconfianças no processo eleitoral convencional que motivaram os estudos para implantação de uma “máquina de votar”, a qual viria a ser aplicada pela primeira vez em 1996.

O fato de justamente um sistema criado para ser mais eficaz e menos vulnerável ser agora alvo de desconfiança, gerando movimentação pelo retorno ao modelo que era visto com resguardo é percebido pelos autores do documento como uma incoerência que só encontra aderência na opinião popular por estarmos vivenciando um “crescimento exponencial da desinformação”, turbinada pelos alardes de leigos que se manifestam como profetas do Apocalipse nas redes sociais.

Na maior democracia do planeta, os Estados Unidos, os votos impressos não se comprovaram como um meio de se evitar qualquer suspeita de fraude – ao menos foi esse o recado dado pelo ex-presidente Donald Trump, que acusou a torto e a direito seus opositores de solaparem a democracia, afirmando que a integridade da eleição foi violada.

Ora, se as urnas físicas são alvo de crítica em uma nação famosa pelo compromisso com a democracia, e com um monitoramento legal e policial extremamente rígido, o que faz alguém acreditar que o voto impresso no Brasil será blindado de polêmicas, fraudes e incertezas dos mais variados tipos? Somos colecionadores de violações à democracia com a compra de votos, o fisiologismo, as propagandas políticas antecipadas, etc, etc, etc. Mas em nosso país foi eleito um bode expiatório eletrônico.

O complô contra as urnas eletrônicas faz uso de uma ferramenta eficaz em seu potencial de capilaridade devastador: as fake news. Foto: TSE

O complô contra as urnas eletrônicas faz uso de uma ferramenta eficaz em seu potencial de capilaridade devastador: as fake news. Alguns casos são citados no documento, que ainda alerta: “A lista é extensa e é provável que, neste exato momento que o texto é escrito ou lido, uma nova esteja sendo produzida ou disseminada, em uma estratégia típica da propaganda nazista do engano tonificado pela repetição”.

Entremos então nos argumentos que tornam infundada toda essa histeria pseudodemocrática: as urnas não são conectadas à Internet, então são inacessíveis a hackers. Mesmo assim, elas possuem 30 camadas de segurança que protegem o sistema de uma eventual tentativa de invasão. Como se não bastasse, elas possuem um arquivo denominado “log da urna”, que é uma espécie de “caixa preta”, registrando todas as operações que foram realizadas, produzindo um relatório que é fornecido a todos os partidos políticos. E não para por aí: as auditorias ocorrem com um ano de antecedência, havendo ainda um teste público de segurança permitindo o acesso às urnas “para que sejam deliberadamente atacadas por qualquer pessoa (…) com o fim de detectar alguma vulnerabilidade”. É de se perguntar por qual motivo os detratores das urnas eletrônicas não escalaram um timaço de especialistas tecnológicos para o teste a fim de comprovar que elas são realmente vulneráveis.

Há uma frase que resume todo o raciocínio do documento: “A desinformação que coloca o sistema eletrônico de votação brasileiro no centro do debate se localiza na confluência entre a teoria conspiratória e o populismo”. Enfim, há muita informação no texto e não há como se mencionar tudo aqui nessas breves linhas. Vamos tentar resumir em um raciocínio simples e pragmático: antes das urnas eletrônicas, as denúncias de fraude existiam em grande quantidade por todo o país (urnas roubadas, violadas, adulteradas, “extraviadas”, etc), sendo que muitas delas foram comprovadas, enquanto que em 26 anos de uso da urna eletrônica não houve uma única denúncia comprovada. Temos medo daquilo que não vemos, daí a desconfiança de muita gente leiga sobre o sistema eletrônico, afinal “cadê meu voto?!”. Bom, nesse momento você está lendo essas linhas que foram redigidas totalmente em meio digital, então fica aqui uma reflexão até desconcertante: o fato de não haver papel e tinta na construção desse texto significa que ele não exista?

Helicópteros da Aeronáutica levam urnas eletrônicas a localidades ribeirinhas do Acre (foto: João Evangelista/Agência Força Aérea) Fonte: Agência Senado

Há aspectos curiosos nessa briga contra as urnas eletrônicas, sendo que um dos principais é o fato de parte dos militares de alto escalão a verem com maus olhos: o irônico é que o advento do voto sem cédula foi criado com a ajuda dos próprios militares, que atuaram na parte operacional de implantação em 1996. Segundo o jurista Leopoldo Soares (Professor de Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie), “a Aeronáutica foi a maior responsável pelo desenvolvimento da logística de distribuição das urnas pelo Brasil” – depoimento que consta na matéria intitulada “Urna eletrônica foi criada com a ajuda de militares”, publicada pela Deutsche Welle Brasil em 22.07.22.

O documento ainda evidencia que a Força Aérea Brasileira também atuou no desenvolvimento tecnológico do projeto, dentre outras participações relevantes de militares de altíssima patente. Sendo assim, é necessário que ou o exército brasileiro faça um mea-culpa retratando-se desse apoio hoje considerado equivocado, ou que se posicione em favor do sistema que ele próprio ajudou a construir. O que não combina com a disciplina e o respeito à autoridade, tão caros ao nosso exército e a qualquer outro do planeta, é uma posição neurastênica na qual o consenso se mostra à deriva e sem uma voz oficial.

Outro fato curioso é a inversão nos papéis de defesa e ataque às urnas eletrônicas. Em 2002 o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se manifestou inquieto e desconfiado quanto às urnas eletrônicas. Agora, quem faz o papel de algoz do sistema digital é o Presidente Jair Bolsonaro, e de forma tão agressiva e veemente que fez do tema a principal pauta de seu discurso para diplomatas estrangeiros no dia 19.07.22. Quem ganha com essa instabilidade e oscilação de posições? Por certo que não é a democracia brasileira.

Abin: “confiança na lisura do processo eleitoral brasileiro” – Foto: Abin-Divulgação

O fato é que a crise de confiabilidade foi instaurada pelo apedrejamento constante na credibilidade do pleito eletrônico, chegando ao clímax com a divulgação de um documento assinado pelos servidores da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), divulgado em 20.07.22, no qual manifestam “confiança na lisura do processo eleitoral brasileiro”. Trata-se, na verdade, de um clímax de momento, pois outros mais poderão ocorrer se a escalada de truculências contra a urna eletrônica prosseguir até as próximas eleições, suscitando inclusive uma quase anunciada insubordinação ao resultado registrado por elas.

Para os que, apesar de todos os argumentos, não acreditam nas urnas eletrônicas, vale o alerta para que tirem seu dinheiro do banco, afinal as transações são todas eletrônicas. E também para que deixem de voar, porque o controle aéreo é eletrônico. Aproveitem também para cancelar seus exames médicos e cirurgias, porque ficam armazenados em suportes eletrônicos. Sim, afinal nada impede que um médico acesse seu diagnóstico digital e o adultere – é, aliás, extremamente mais plausível que isso ocorra do que uma fraude nas urnas eletrônicas. Com o avanço da tecnologia e da Internet das coisas (IOT), mais e mais operações vitais estarão subordinadas ao universo digital. A votação eletrônica é apenas um dos inúmeros e inevitáveis efeitos desse avanço. Se ela for colocada em xeque, tenha certeza: até as notas de nossos filhos no boletim do colégio serão motivo de crise e desconfiança.

O Brasil hoje é um modelo mundial em eficiência na condução de suas eleições, e muito do mérito se deve às urnas eletrônicas. De minha parte, considero realmente que podemos ficar tranquilos e respeitá-las. Mas é condição básica da democracia dar voz ao contraditório, então respeito quem discorda. Apenas rogo que sejamos razoáveis e aceitemos a opinião dos que confiam na eleição eletrônica: 82% dos brasileiros segundo pesquisa do Instituto Datafolha divulgada em 25.03.22. Afinal, não há nada mais antidemocrático do que desrespeitar a maioria.

José Elias Castro Gomes é empresário em Foz do Iguaçu.

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