UNILA – A caminho da Heteronomia?

Gleisson Brito, Professor na Unila, fala sobre o futuro da Unila.

Gleisson Brito – OPINIÃO

1. A história se repete como tragédia ou como farsa.

​Recentemente, mais uma investida sobre a autonomia da Universidade Federal da Integração Latino-Americana – Unila, tem suscitado debate acalorado na comunidade acadêmica. Digo mais uma, pois a universidade já foi alvo de diversos movimentos atentatórios, em especial ao seu caráter internacionalista latino-americano. Contudo, resiliente e intrépida como é, em todos os casos, nossa instituição, graças principalmente à resistência e à união de sua comunidade, manteve-se viva e autônoma. 

​Relembro três casos. Na memória coletiva ainda está a famigerada tentativa de mudança de denominação e, com ela, da missão institucional da Unila. A proposta, elaborada por membro do Poder Legislativo brasileiro no ano de 2018, foi, à época, esmagada pela força das reações da comunidade acadêmica e da sociedade civil organizada. Não menos lembrada é a proposital protelação do governo federal para a nomeação do primeiro reitor eleito da universidade, no ano de 2019. O ato  colocou a Unila em cenário de incertezas e de inseguranças jurídica e administrativa. Mais uma vez, a  instituição não hesitou, e usou de toda sua força para fazer valer o desejo da comunidade acadêmica e sua autonomia. Já nos anos de 2021 e 2022, o enfrentamento da pandemia gerou novas tentativas de rompimento da autonomia universitária. A Unila enfrentou pressões e ameaças de processos judiciais quando decidiu paralisar suas atividades e, posteriormente, quando decidiu pela exigência de vacinação contra Covid-19 para ingresso em suas dependências. Novamente, a universidade não se curvou e manteve preservadas a vontade de sua comunidade e a autonomia de suas decisões.

Sob a gerência de um Governo Federal progressista, iniciado em 2023, a comunidade unileira acreditava que viveria um período sem ataques à sua existência ou à sua autonomia. Foi, portanto, pega de surpresa por entrevista do Diretor Geral de Itaipu Binacional pelo Brasil (DGB), na qual se anunciavam tempos bem diferentes. Em 31 de outubro de 2023, em entrevista à mídia independente veiculada no canal do Barão (https://www.youtube.com/watch?v=loBu1WbGJ-U), o diretor referido informou ter levado ao Presidente da República do Brasil sugestão elaborada por ele e pelo Diretor-geral de Itaipu pelo Paraguai, por sugestão do Presidente da República paraguaia, da transformação da Unila na primeira universidade binacional do país. Isso mesmo, friso: transformação a Unila!  

​Analisemos trecho da entrevista em que o tema é a Universidade Federal da Integração Latino-Americana.  Para ganhar atenção redobrada dos espectadores, o DGB inicia seu relato afirmando efusivamente que daria uma “informação em primeira mão” sobre a Unila. Para nosso assombro, o Diretor Geral de Itaipu, ente externo à Unila, discutiu com outros entes também externos, um projeto de intervenção na caracterização administrativa de uma autarquia federal universitária e estava, segundo ele, autorizado pelo Presidente da República a anunciá-la. Realmente, a afirmação do DGB sobre a exclusividade da notícia parece proceder, pelo menos no que se refere à ignorância do assunto pela comunidade universitária da Unila. O Diretor cita conversas realizadas sobre o tema nos mais altos escalões das duas Repúblicas envolvidas, mas não menciona a presença de nenhuma representação da Unila nos debates.

​2. É chegada a heteronomia?

Questionada após o anúncio do DGB, a Reitoria da Unila, em matéria publicada no site “Brasil de Fato”, disse que havia sido informada sobre a binacionalização da universidade. Não consultada, informada! Pelas declarações, infere-se que a Unila realmente não debateu o assunto, mas soube da decisão de uma proposta que seria, segunda a Reitoria, embrionária de binacionalização. Na mesma notícia, ainda se lê: “A Unila ressaltou também que o assunto é uma política de Estado, cujo debate se inicia no alto escalão do Governo, entre as Presidências da República, Itamaraty e o Ministério das Relações Exteriores.

​Na reunião do Conselho Universitário realizada no mês de novembro, em uma declaração de três minutos, a reitora da Unila confirmou ao órgão que, de fato, existe uma “ideia ainda muito incipiente” sobre a binacionalização da universidade. Haveria, segundo a gestora, uma proposta de criação de um grupo de trabalho junto ao MEC, no qual a universidade contaria com participação. As informações não esclarecem o cenário e não diminuem as preocupações, sobretudo, quando, em ato contínuo à sua fala, a reitora afirma peremptoriamente: “se essa for uma decisão de política de Estado, a gente não tem no que se contrapor a isso”. Nenhuma nota, nenhum texto com esclarecimentos mais consistentes foram até o momento veiculado pela administração da Unila. 

É preocupante que, no bojo de negociações sobre a retomada das obras do campus Niemeyer, a Unila se coloque submissa a interesses externos. Este é o cenário atual. Uma proposta de transformação da Unila, gestada e pautada por atores externos à universidade. Recepcionada e acatada pela gestão da instituição que, tomando por base as manifestações feitas até o momento, parece ter renunciado ao princípio da autonomia universitária. Esta situação de heteronomia universitária tem causado grande insegurança, ansiedade, descontentamento e decepção generalizada na comunidade. Heteronomia significa dependência, obediência, submissão, subordinação, sujeição. É antônimo de autonomia. A heteronomia pode ser a causa mortis de uma instituição pujante e vibrante, pois somente uma universidade verdadeiramente autônoma pode vencer investidas de atores externos.

​3. Qual o futuro da Unila, seus servidores públicos e seus corpo discente?

​Muito se tem especulado sobre o significado desta transformação, seus impactos para os quase mil servidores(as) públicos(as) da universidade, bem como para o corpo estudantil. Mas o fato é que nada sabemos. A comunidade unileira não conhece quaisquer detalhes adicionais e não vê a administração institucional buscar informações, tampouco publicizá-las e debatê-las. Sequer as informações incipientes recebidas pela Reitoria sabemos quais foram. Tudo é obscuro.

​Questões complexas a serem respondidas não faltam. Hoje, por exemplo, a Unila pratica uma política de reserva de vagas. Cinquenta por cento para estudantes internacionais da América Latina e cinquenta por cento para estudantes brasileiros(as). Em uma possível Unila brasiguaia, dada a evidente necessidade de distribuição equitativa de vagas entre os dois países que gerem o novo organismo binacional, qual das duas cotas seria reduzida? Redução da entrada de brasileiros ou redução da entrada de estudantes de outros países da América Latina?

​Surgem também questionamentos sobre o mecanismo da distribuição de vagas docentes e de vagas técnico-administrativas em uma universidade binacional. Professores(as) com carreira gerida pelos Estados paraguaio e brasileiro dividirão as cargas horárias dos cursos? Terão que cumprir cargas horárias diferentes? Questões trabalhistas diferentes para docentes de um mesmo curso? E para os(as) técnicos? Regimes jurídicos diferentes? Concursos públicos? Ponto eletrônico? Cotas para docentes e técnicos(as) brasileiros(as) e paraguaios(as)? Hoje, o tema das vagas já constitui um grande desafio. Cria, inclusive, disputas políticas entre as universidades da rede federal de ensino. Como será neste novo projeto?

​Os Projetos Pedagógicos dos cursos (PPCs) da Unila foram pensados e desenvolvidos ao longo dos anos por um grande contingente de acadêmicos(as) brasileiros(as) e internacionais. Estes PPCs foram pensados para atender às Diretrizes Nacionais de Educação do Brasil. É factível supor que uma Unila brasiguaia deva expedir diplomas com validade binacional. Quais adaptações curriculares deverão ser feitas? Todos os cursos da Unila deverão reformular seus Projetos Pedagógicos para atender as normas do Estado paraguaio? Cito apenas algumas das inquietações que afligem hoje a comunidade acadêmica.

4. ethos universitário.

​O debate está posto. Aflora pelos corredores e salas de aula. A comunidade vai, paulatinamente, tomando para si a proatividade de iniciar as discussões, dada a inação da gestão em pautar o debate internamente. Não se ouviu falar, até agora, de audiências públicas, muito menos de consultas públicas voltadas à comunidade.

​A comunidade da Unila, outra vez, terá de lutar, defender seu interesse em continuar sendo uma universidade qualitativa e independente? Terá de lutar para seguir sendo uma autarquia federal? Os servidores públicos terão de lutar por suas carreiras? Os estudantes terão diplomas expedidos por uma Universidade Federal? Não devemos esmorecer. Lembremos que a cada  agrura vivida, a Universidade Federal da Integração Latino-Americana sempre saiu mais forte, mais consolidada e mais reconhecida!

Nas crises, nosso corpo acadêmico-administrativo aprofundou seu senso de pertencimento à uma comunidade fraterna, vibrante, pujante e intrépida. O respeito pela autonomia universitária é premissa sine qua non para a existência, resiliência e resistência da Unila! A Unila disse, diz e dirá não à heteronomia!

Gleisson Brito, Professor na Unila.


Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do H2FOZ.

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