A celebração de datas importantes mantém vivos os significados do passado. As comemorações são ritos que trazem o passado ao presente, e nestes fios de memória construímos novos passos rumo ao futuro. Na contramão da história, como referência, temos o esquecimento, mas a deturpação dos fatos que marcaram e transformaram a humanidade é quase tão cruel quanto o ato de não lembrar. A questão que se coloca é que: seja por um lado ou por outro, nega-se o passado, oculta-se o presente e condena-se o futuro à repetição.
O dia 8 de março é um exemplo emblemático do que estamos falando. É certo que nem todos têm a devida consciência de que, por trás das flores e das caixinhas rosadas, há uma ocultação violenta da história de luta das mulheres e, ao mesmo tempo, a negação das nossas reais necessidades.
A primeira coisa que todos precisam ter em mente é que o 8M representa um dia de luta das mulheres contra a opressão e o uso de argumentos biológicos para justificar uma pretensa superioridade masculina.
Ao longo da história, uma série de acontecimentos marcaram o mês de março. Por exemplo, o incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist Company, no dia 25 de março de 1911, em Nova York, que resultou na morte de 125 trabalhadoras e 21 trabalhadores. Naquele período, as mulheres reivindicavam melhores condições de trabalho, que naquela época eram infinitamente piores do que as dos homens. Em março de 1909, uma grande passeata, também na cidade de Nova York, reuniu cerca de 15 mil mulheres que reivindicavam melhores condições e igualdade no mercado de trabalho. Mas, definitivamente, a greve do dia 08 de março de 1917, na Rússia, é considerada o marco na consagração da data. Neste dia, aproximadamente, 90 mil mulheres saíram às ruas com cartazes pedindo “igualdade, pão, paz e terra”. Foi um período marcado pela primeira Guerra Mundial, em que a fome e a miséria tornavam a vida, principalmente, da mulher trabalhadora, insuportável. O contexto da época permitiu que as mulheres ingressassem na indústria têxtil, por se tratar de uma mão-de-obra barata, tendo uma carga horária de trabalho de até 16 horas. Para piorar a situação, não havia garantia de direitos políticos e civis, e o trabalho na fábrica não as eximiu do trabalho doméstico e da maternidade. Diante da situação as operárias desobedeceram as lideranças masculinas e paralisaram, decretando greve geral. O movimento foi o estopim de uma grande revolta popular de cunho socialista, que transformou o papel da mulher no mundo.
A ONU oficializou o dia 08 de março como o Dia Internacional da Mulher em 1975. Desde então esta data é referenciada no mundo inteiro. Nos últimos anos, observa-se o crescente apelo comercial, à venda de produtos, flores etc…, o que resulta no esvaziamento do significado de luta do 8M, o substituindo por uma concepção de feminilidade frágil.
A ênfase no comércio florido produz um comemoratismo desenraizado das reais condições que levaram a esse dia e por que ele é tão importante. O 8M oportuniza a retomada do passado de luta e atualiza a permanente necessidade de combater as desigualdades e a discriminação no mercado de trabalho.
Neste momento, a pandemia da covid-19 desmascarou as violências contra as mulheres. Sabemos que são as pessoas mais pobres as que mais têm sofrido e perdido seus entes queridos. Essas pessoas são ainda as que mais tem que arriscar a vida em busca de trabalho e são obrigadas a estarem em coletivos lotados, feiras e atividades informais em busca do sustento.
No que se refere, especificamente, às mulheres, elas são a maioria nas unidades de saúde , pois são as enfermeiras, auxiliares e técnicas de enfermagem que mais tem sofrido e trabalhado durante a pandemia. Não podemos deixar de citar e reconhecer as trabalhadoras domésticas, que diariamente tem que trabalhar em casas sob o manto da desconfiança de serem portadoras do vírus, enquanto os filhos da classe média seguem em baladas noite adentro produzido aglomerações.
Neste momento de pandemia, a luta das mulheres segue em múltiplas jornadas: seguimos reivindicando direitos e igualdade no mercado de trabalho. Demandamos do Estado serviços públicos de qualidade, que venham a atender as necessidade das mulheres – escolas, creches, igualdade salarial, participação política e aborto legal com segurança. Seguimos na luta no âmbito social e privado, pois em pleno século XXI, e mesmo com todo avanço tecnológico o pensamento social sobre o Ser Mulher, de um modo geral, ainda está eivado de um conservadorismo impressionante ou, por que não dizer, uma hipocrisia patriarcal gigantesca. As mulheres ainda são as maiores responsáveis pelo cuidado e zelo dos filhos, é valido lembrar que essas funções são vividas como um valor moral. Ainda é vigente a divisão sexual do trabalho seja na esfera pública ou privada.
Esse modelo de mulher parida do pensamento patriarcal capitalista aprisionou as mulheres em duas categorias: uma é santa imaculada, e a outra a puta depravada. Vejam que em ambas às mulheres têm seu corpo aprisionado, em ambas, elas são produtos de consumo e em todos os casos sofrem violências. No Brasil, diariamente, dezenas de mulheres são mortas. Elas morrem nas ruas, dentro de casa, pelas mãos dos maridos, irmãos, vizinhos. Diariamente, meninas tem a infância interrompida pela gravidez precoce. O machismo outorga ao homem a noção de direito sobre a mulher e o seu corpo. O machismo não aceita o não como resposta. A mulher na condição de coisa tem que estar à disposição do usurpador.
A virulência do machismo é tão forte que atinge a todas nós. Não é á toa que a violência atinge as mulheres de todas as raças e classes, mas seguindo a lógica das sociedades capitalistas, na base da pirâmide da desigualdade temos as mulheres negras, pobres, migrantes, trans, com baixa escolaridade e consequentemente poder aquisitivo. E são elas as maiores vítimas da irracionalidade machista, não resta a menor dúvida!
Diante desse panorama nos cabe perguntar: PARABÉNS, PRA QUEM? No Brasil, além da pandemia, temos o desafio de enfrentar um governo genocida e misógino, que tem usado de todas as táticas possíveis para piorar o quadro sanitário, seja promovendo aglomerações ou comprando e incentivando o uso de medicamento seu comprovação cientifica.
Na paralela de toda esta catástrofe, o Brasil vai se tornando o paraíso do agrotóxico, muitos deles proibidos em vários países do mundo. Em meio à crise sanitária, o governo estimula o uso e abre concessão para a compra de armas, cujo registro quase que triplicou nos dois últimos anos. No dia 02 de fevereiro, na cidade Niterói, Ana Clara Machado, de 5 anos de idade, morreu vítima de bala perdida na frente do irmão de 02 anos. Dois dias depois, o presidente afirmava acordo para aprovar o excludente de ilicitude. Este é o país em que sobrevivemos!
Seja com o descaso e o despreparo para atuar na pandemia, seja na liberação de armas e de agrotóxicos, o povo brasileiro está em ataque permanente e as mulheres seguem sendo as mais agredidas. Portanto, lutar pelo desarmamento, pedir vacina para todos e todas, auxilio emergencial e gritar Fora Bolsonaro é algo importante para todas nós.
“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”
Seguimos na esperança de que o “Dia das Mulheres” por que tanto lutamos chegará. Dia em que todas nós, em todos os dias, seremos respeitadas. Dia em que as flores chegarão em contextos de respeito e não como um pedido tímido de desculpas, diante de violências imperdoáveis. Dia em que todas a mulheres possam exercer o direito pleno sobre seu corpo e o medo não nós afligirá em nenhum horário, em nenhum lugar, e não importará a roupa que estivermos vestindo. Se, para os homens, caminhar de short e camiseta à noite é algo normal, para as mulheres ainda é motivo de medo e preocupação. Talvez, neste dia as flores não sejam sentidas como desfaçatez, mas como um gesto gentil e uma forma respeitosa de reconhecer a luta e referendar as nossas mártires.
*Danielle Araujo, promotora Legal Populares da Fronteira Trinacional.
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