O Mercosul Social e Participativo Voltou

Leia opinião de Renato Martins, sobre o Mercosul Social e Participativo.

Renato Martins – OPINIÃO

Retomo neste artigo algumas ideias que expus, a convite da Secretaria-Geral da Presidência da República, no seminário “A Participação Social no Mercosul”, uma reunião do governo com membros da sociedade civil brasileira, realizada no dia 10 de outubro, no Itamaraty, para discutir o futuro da participação social no Mercosul. O seminário foi organizado pela SGPR, em colaboração com o Ministério das Relações Exteriores, como parte do esforço do governo brasileiro de retomar, sob a Presidência Pro Tempore do Mercosul, as chamadas Cúpulas Sociais do Mercosul. A participação da embaixadora Maria Laura da Rocha, secretária-geral do Ministério das Relações Exteriores, e da secretária-executiva da Secretaria-Geral da Presidência da República, Maria Fernanda Ramos Coelho, na mesa de abertura de seminário, revela a importância que o governo atribui ao diálogo e à participação social também a nível internacional. O presidente Lula já havia determinado em abril passado, como prioridade de seu terceiro mandato, a participação social na construção, monitoramento e avaliação das políticas públicas por meio da criação do Conselho de Participação Social e de um Sistema de Participação Social Interministerial, sob coordenação da Secretaria-Geral da Presidência da República.

Assim como aconteceu com muitos âmbitos de participação e diálogo social extintos pelo governo passado – como o Conselho da Segurança Alimentar, reconhecido por sua contribuição no combate à fome -, as Cúpulas Sociais do Mercosul também foram suprimidas da agenda da integração regional. O próprio Mercosul por pouco não desapareceu nos últimos anos diante dos sucessivos ataques à tarifa externa comum (TEC), mecanismo que garante a condição de união aduaneira do bloco, contestada pelos governos neoliberais. É louvável que o presidente Lula, em seu terceiro mandado e agora na presidência pro tempore do Mercosul, relance as metas do Mercosul Social e Participativo, deixando claro o compromisso de recriar as Cúpulas Sociais do Mercosul, a exemplo do que vem fazendo com as Conferências Nacionais e os Conselhos de Políticas Públicas.

O Mercosul Social e Participativo parece ser mais necessário agora do que foi no passado, quando os governos progressistas se alinharam em torno do compromisso de dotar o Mercosul dos canais de diálogo e participação social.  As Cúpulas Sociais do Mercosul, como muitos devem se lembrar, foram o lado mais visível desse esforço continuado. De 2006 a 2016 elas se realizaram regularmente, reunindo os presidentes dos países do bloco com representantes da sociedade civil para discutir a integração em seus mais variados aspectos. O Brasil teve um papel ativo nesse processo, cumprindo, aliás, o que estabelece a Constituição Federal, ao dizer no Art. 4º, que “a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina”.

Foi na presidência pro tempore do Uruguai que surgiu o Programa Somos Mercosul, durante o governo Tabaré Vásquez (2005); em seguida, no governo Nestor Kirchner, realizou-se o Encontro do Mercosul Produtivo e Social (2006); e, logo depois, realizou-se a Cúpula Social do Mercosul (2006), no governo Lula. Partíamos da avaliação de que o Mercosul, da forma como tinha evoluído,  com as marcas de origem do regionalismo aberto, precisava ser ajustado à nova agenda da integração desenvolvimentista adotada pelos governos progressistas. A ideia de uma integração ampliada, como passamos a chamá-la, implicou abarcar novos temas e novos atores até então à margem das discussões sobre o Mercosul. Múltiplas mudanças resultaram dessa decisão. Aqueles foram, de fato, anos dourados da integração regional.

O Mercosul Social, o Mercosul Educacional, o Mercosul Cultural, o Mercosul dos Direitos Humanos, entre tantos outros âmbitos de integração foram criados e tornaram-se expressão dos avanços conquistados naquele período. Muitas dessas conquistas, entre as quais se destaca o Parlasul, na integração política, e o Focem, o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul, na integração econômica, foram possíveis graças à reorientação política do bloco, o que permitiu a incorporação de novas temáticas e novos atores, como é o caso das Reuniões Especializadas do Mercosul, entre as quais a REAF foi uma das pioneiras e um caso exemplar na área da agricultura familiar.  A luta pelos Direitos Humanos se fortaleceu com a criação da RAADH, a Reunião de Altas Autoridades sobre Direitos Humanos e  do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos, o IPPDH, organismo emblematicamente localizado na sede da Escola de Mecânica da Marinha, centro clandestino de detenção, tortura e desaparecimento de prisioneiros políticos durante a ditadura argentina, e que hoje se ocupa de políticas regionais de combate ao racismo, violência contra as mulheres, direitos dos migrantes, entre outras. Isso sem falar na criação da UNILA, a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (2010), e de sua  relevância para o desenvolvimento de um projeto educacional latino-americanista em toda a região. Retomar a integração regional do Mercosul exige fortalecer o papel dessas e outras instâncias especializadas que foram sendo abandonas nos governos passados.

As Cúpulas Sociais do Mercosul implicaram uma mudança de atitude, tanto da parte dos governos quanto da sociedade civil. Se alguma dúvida ainda existia,  elas deixaram claro que a democracia é uma condição indispensável para o avanço da integração regional. Essa ideia, presente nos primeiros acordos de cooperação entre Argentina e Brasil nos anos 80, foi sendo minimizada pelos governos neoliberais nos anos 90 e, finalmente, foi abandonada pelo Brasil no governo passado. Como consequência, vimos o Mercosul à deriva desde 2016. A reconstrução da democracia no país, tarefa que o governo Lula estabeleceu como prioridade do seu terceiro mandato, pressupõe retomar os canais de participação e diálogo social. Por isso é imperioso que a próxima reunião presidencial do Mercosul, a realizar-se no início de dezembro, no Rio de Janeiro, emita uma mensagem clara de que as Cúpulas Sociais do Mercosul serão relançadas em moldes presenciais, com financiamento público e encontros regulares entre representantes da sociedade civil e os presidentes dos Estados-Parte.

A nova agenda da política externa mudou positivamente e contribuirá para fortalecer a posição do Brasil no Mercosul. A questão das mudanças climáticas, por exemplo, demanda a coordenação dos países do Mercosul e da OTCA (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) em torno de negociações extremamente complexas.  O princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, defendido pelo Brasil desde a ECO-92, encontrará seguramente a tradicional resistência dos países centrais. O alinhamento dessas posições vai requerer não só uma robusta ação política e diplomática da parte do governo, mas também um esforço autêntico de diálogo com a sociedade civil organizada. Como ficou patente no recente encontro preparatório da COP-2025, realizado recentemente em Belém, os movimentos sociais e indígenas não se dispõem mais a aceitar decisões sobre a Amazônia que não levem em conta a participação dos povos amazônidas. Vê-se como o relançamento dos âmbitos de participação e diálogo social do Mercosul é uma necessidade que transcende o próprio bloco. Por isso, a Cúpula Presidencial do Mercosul de dezembro não deveria deixar de aprovar uma resolução clara de recriação das Cúpulas Sociais como prática regular do bloco. Que o mesmo esforço seja feito em relação a recriação da Unidade de Participação Social do Mercosul (UPS), de forma que os países membros se sintam  estimulados a apoiá-la, garantindo o seu financiamento, zelando pelo seu prestígio e fornecendo as informações necessárias que garantam uma participação qualificada da sociedade civil.

Como demonstra o passado recente, a institucionalização e o financiamento público desses espaços de participação são exigências democráticas incontornáveis. É necessário garantir que eles funcionem como política de Estado, independentemente do perfil político-ideológico dos governantes. A experiência do Mercosul Social e Participativo foi extremamente rica, mas foi facilmente desmontada por um governo antidemocrático. As Cúpulas Sociais são importantes, mas insuficientes. É necessário retomar o funcionamento do Conselho do Mercosul Social e Participativo, fórum nacional em que o governo brasileiro se reunia regularmente com representantes da sociedade civil para debater as políticas de integração. É hora de fazer um balanço criterioso de todas essas experiências para que elas possam ser aperfeiçoadas e adaptadas aos novos tempos. Apesar das atuais incertezas que pairam sobre o bloco, é urgente traçar uma linha demarcatória e evitar que haja qualquer tipo de recuo em relação ao que foi conquistado naqueles anos e depois abandonado.

Por fim, sublinhe-se que o Conselho do Mercosul Social e Participativo é um dos canais de participação e diálogo social do Mercosul, e não o único âmbito de participação. Há tempos a sociedade civil demanda a criação do Conselho Nacional de Política Externa Brasileira, discussão oportuna e necessária neste contexto de reconstrução democrática. Além disso, é muito interessante que o Itamaraty, conforme informado no seminário, tenha introduzido o tema da diversidade e da participação social no programa de formação dos jovens diplomatas que ingressam no Instituto Rio Branco. Ademais, convém lembrar que a maior parte dos ministérios possui secretarias internacionais que ajudam a adensar o diálogo social em suas respectivas áreas de atuação. Muitas delas são imprescindíveis em se tratando da integração ampliada do Mercosul, como é o caso das secretarias internacionais dos ministérios da Educação, Saúde, Cultura, Direitos Humanos, Desenvolvimento Agrário, Mulheres, Juventude e todos os demais cujas políticas nacionais cruzam a temática da integração regional. Ao abrigar e fortalecer as Reuniões Especializadas, instâncias tradicionalmente atentas ao diálogo com a sociedade civil, elas se tornam imprescindíveis para o relançamento do Mercosul Social e Participativo. Além disso, não podemos esquecer as campanhas massivas, muito frequentes quando o Fórum Social Mundial mantinha o vigor dos primeiros anos, ou mesmo antes, quando as lutas contra a ALCA se espalharam pelo continente, e que podem ressurgir a qualquer momento. A realização da  Jornada Latino-Americana e Caribenha de Integração dos Povos, prevista para acontecer em dezembro próximo nas instalações da UNILA, em Foz do Iguaçu, é um novo capítulo dessa história de lutas. Convocada pela Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul e a Via Campesina, entre outras organizações nacionais e regionais, ela pretende reunir os movimentos populares latino-americanos para discutir a integração dos povos. Que seja muito bem-vinda!

Renato Martins, sociólogo. Foi chefe da assessoria de Relações Internacionais da Secretaria-Geral Presidência da República (2006 a 2011). Ex-presidente do FoMerco (2017-2019). É professor do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política da UNILA (2010).   


Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do H2FOZ.

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