Itaipu, 50: considerações sobre a revisão do Anexo “C”

A própria memória daqueles que construíram a empresa não fazem justiça ao sacrífico dos povos que sofreram os impactos da sua edificação.

*Miguel Conrado Testti Pera – OPINIÃO
*Paulo Henrique Zuchoski
*Anibal Orue Pozzo
*José Renato Vieira Martins

No ano que vem comemora-se o cinquentenário do Tratado de Itaipu acordo que viabilizou a construção da usina hidrelétrica que viria a ser a maior do Século 20. A história desses cinquenta anos ainda é contada de forma desigual e assimétrica. Apesar de ser uma grande obra de engenharia do seu tempo, as fontes, as narrativas hegemônicas e a própria memória daqueles que construíram a empresa não fazem justiça ao sacrífico dos povos que sofreram os impactos da sua edificação.

Enquanto o progresso tecnológico e o desenvolvimento econômico são louvados na literatura como façanhas exclusivas de uma elite política e empresarial, a contribuição propriamente oriunda das classes populares e os sacrifícios dos trabalhadores são normalmente invisibilizados. Pouco restou da memória dos barrageiros, dos trabalhadores que durante vários anos viveram e construíram esta obra, dos pequenos agricultores que perderam suas propriedades ou dos povos indígenas que tiveram suas terras ancestrais inundadas pela represa. É chegada a hora de rever essa tradição. Não para atacar ou questionar a importância econômica e social que a Itaipu representa para os dois países, mas para fazer justiça à memória daqueles cuja presença foi minimizada ou esquecida pela história oficial.

Terras ancestrais foram inundadas pela represa. Foto: Acervo/Itaipu Binacional

Não faltam motivos para que isto seja feito agora. O primeiro, é que o pagamento da dívida contraída para construir a usina está previsto para acontecer em 2023. Da receita operacional da empresa, da ordem de 2,8 bilhões de dólares, 75% estão comprometidos com o pagamento de dívidas e encargos. Quando a dívida for quitada, cerca de 2 bilhões de dólares deixarão de ser transferidos aos credores internacionais. Qual será o destino dessa montanha de dinheiro? Que benefício isso trará para aqueles que construíram essa grande empresa com o sacrífico próprio e o de suas famílias? E os trabalhadores, será que eles se beneficiarão da nova situação financeira?

Pouco restou da memória dos barrageiros, dos trabalhadores que durante vários anos viveram e construíram esta obra. Foto: Acervo/Itaipu Binacional

Paralelamente, em 2023, deve ser concluída a revisão do chamado Anexo C do Tratado de Itaipu. Neste Anexo se estabelecem os termos financeiros do Tratado que deu origem à empresa binacional. Temas sensíveis estão contidos nesta parte do Tratado. A cessão da energia excedente talvez seja o mais delicado, e é motivo de exigência de equidade e igualdade por parte dos paraguaios que consideram a cessão compulsória da energia não consumida para o Brasil por um preço mínimo fora do valor de mercado constitui uma violação da sua “soberania energética”. Obviamente, este ponto estará sobre a mesa.

A privatização da Eletrobrás não contribui para tornar menos complexas as negociações de revisão do Anexo C. Ao contrário, ela entrega aos interesses privados o patrimônio construído por brasileiros e paraguaios ao longo de cinquenta anos e cria uma nova frente de contenciosos com o país vizinho. O que isto pode representar em termos de aumento das tarifas de energia elétrica para os consumidores e a população dos dois países? E para a classe trabalhadora, quais poderão ser as suas consequências?

Vertedouro da Itaipu. Foto: Acervo/Itaipu Binacional

A pauta sindical move-se de acordo com a conjuntura. As políticas ultraliberais praticadas pelos governos brasileiro e paraguaio impõem ao sindicalismo, neste momento, uma agenda defensiva. Mas esta situação pode mudar. A revisão do Anexo C e a liberação dos recursos financeiros destinados ao pagamento da dívida pode estimular uma postura mais ofensiva, criando as condições para a retomada de reivindicações trabalhistas e o fortalecimento do papel sociopolítico do sindicalismo. Melhores salários e condições de trabalho, formação e capacitação do trabalhador, saúde e segurança no trabalho, participação no lucro da empresa, direitos sindicais dos trabalhadores terceirizados são algumas demandas tradicionais que podem se somar às reivindicações populares, indígenas, camponesas, ambientalistas de todos aqueles que sofrem ou já sofreram os impactos da Itaipu.

Em nenhuma hipótese a revisão do Anexo C pode servir de pretexto para eliminar direitos e rebaixar conquistas econômicas dos trabalhadores da Itaipu Binacional. É justamente nessa perspectiva que os Sindicatos dos Trabalhadores da Empresa Itaipu Binacional (STEIBI) e de Foz do Iguaçu (SINEFI) iniciaram um plano de cooperação com a Universidad Nacional del Este (UNE) e a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) em torno de uma mesa de acompanhamento das negociações de revisão do Anexo C. O objetivo desse intercâmbio é identificar os atores relevantes e definir os temas estratégicos para os trabalhadores e a população dos dois países. Futuramente, ele pode servir de inspiração a novas parcerias acadêmicas e alianças com os movimentos sociais em torno da mesma problemática.

Torcemos para que nos próximos anos Itaipu seja uma empresa ainda mais relevante do ponto de vista econômico e energético e, ao mesmo tempo, mais amigável do ponto de vista socioambiental, com cuidados especiais em relação aos Avá-guarani, povo cujos territórios foram alagados e que reclamam há anos por uma reparação. O sindicalismo e a academia se associam neste momento de prováveis mudanças do setor energético e passam a atuar, numa perspectiva interdisciplinar, em prol dos direitos à vida e à memória das populações da fronteira trinacional. A energia excedente talvez seja o ponto mais delicado das negociações em curso. As privatizações não resolvem o problema, e apenas aumentam os preços das tarifas e o risco dos apagões. O patrimônio construído por brasileiros e paraguaios deve ser preservado para que não se abra uma nova frente de contenciosos com o país vizinho.

Nos próximos dias estes temas estarão sendo debatidos e aprofundados no Seminário Internacional “Energia, Integração e Fronteiras”, fruto de uma parceria inédita dos sindicatos dos trabalhadores do setor elétrico de Foz do Iguaçu e Ciudad del Este com a Universidad Nacional del Este (UNE) e a Universidade Nacional da Integração Latino-Americana. A atividade é voltada aos trabalhadores do setor elétrico e estudantes de graduação e pós-graduação, e contará com participação de pesquisadores e especialistas no estudo da Itaipu Binacional e das relações bilaterais entre o Paraguai e o Brasil.

*Miguel Conrado Testti Pera é secretário-geral do Sindicato dos Eletricitários Itaipu Binacional (STEIBI)
*Paulo Henrique Zuchoski é presidente do Sindicato dos Eletricitários de Foz do Iguaçu (SINEFI)
*Anibal Orue Pozzo é professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)
*José Renato Vieira Martins é professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)

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