“É um entra e sai naquela casa, todos os dias são assim. Crianças; as meninas e os meninos ? Não sei, acho que são sombrinhas, mas também não é da minha conta, não me importa”. Autor desconhecido
Frases como essas são ditas diariamente. Apesar da aparente neutralidade e isenção, elas são importantes para a manutenção de crimes que chocam a todos. O tema é pesado, preferimos muitas vezes não saber ou comentar, tamanha a comoção que ele nos causa, mas quando um caso ganha repercussão nas manchetes dos telejornais e das redes sociais, somos obrigados a reconhecer uma realidade difícil de acreditar.
No dia 18 de maio de 1973, o país ficou chocado com a morte de Araceli Cabrera Sanches Crespo, criança de oito anos, morta, drogada, espancada e estuprada por uma família de classe média no Estado do Espírito Santo. O corpo de Araceli foi encontrado totalmente desfigurado, marcas de mordidas foram identificadas no seu corpo e ácido fora jogado no rosto para dificultar a identificação. Apesar de todas as evidências levarem a uma família tradicional de Vitória (ES), a Dante de Barros Michelini (o Dantinho), Dante de Brito Michelini (pai de Dantinho) e a Paulo Constanteen Helal, o crime permanece impune até hoje.
Por causa desse crime, no ano 2000, foi sancionada a Lei 9.9770 de 17 de maio, que instituiu o dia 18 de maio como o dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. Essa data que relembra o Caso de Araceli, demanda justiça e encoraja toda sociedade a somar-se a essa causa, em prol das crianças e dos adolescentes que sofrem violência.
Em 2018, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou que o Brasil registrou, naquele ano, cerca de 66.041 casos, isso gera uma média de 180 estupros por dia, uma média de 4 estupros por hora. Das vítimas 53,8% eram mulheres. Os dados se tornam ainda mais estarrecedores quando observamos que a maioria dos agressores estão dentro da casa das vítimas, são familiares, vizinhos e “amigos” da família.
O Brasil amarga o quinto lugar no ranking mundial de Feminicídio, e o segundo lugar na esfera da exploração sexual contra crianças e adolescentes.
Há menos de um ano, mais uma vez, o Estado capixaba voltou a ser palco de um episódio estarrecedor – a gravidez de uma criança de 10 anos, que relatou sofrer ameaças e violações, por parte do tio, desde os seis anos. Esse caso também teve grande repercussão, sendo que dessa vez foi agravado pela hipocrisia de fundamentalistas religiosos, que nada fazem em prol da vida das nossas crianças, mas tiveram a audácia de posicionarem-se contra o aborto, que era necessário para a manutenção da vida da vítima e garantido por lei.
A cada violência contra as crianças vamos percebendo, que tão estarrecedor quanto os crimes é a cumplicidade da sociedade. Essa violência, aos olhos de alguns, aparece como imperceptível ou é naturalizada. Não sabemos até que ponto o silêncio, somado à ignorância e à falta de ação das pessoas, tem permitido que nossos pequenos sejam brinquedo sexual nas mãos de maníacos pedófilos. Tanto o abuso, isto é, quando as crianças são utilizadas sexualmente, quanto a exploração sexual, quando são usadas para a produção de imagens pornográficas e a prostituição infantil, são crimes. Toques indevidos, “brincadeiras” expressões como novinha, são a porta de entrada para uma sequência de violências contra meninas e meninos.
A sociedade ainda não se sente devidamente responsável, mas o fato é que somos nós os únicos que podem fazer algo, pois sabemos que dificilmente crianças entre 3 a 8 anos conseguirão denunciar seus violadores. Por outro lado, meninas entre 10 e 18 anos em situação de pobreza acabam tendo que vender seus corpos e consequentemente sua infância pela sobrevivência, elas também são vítimas. De todas as formas, sabemos que o remédio é educação e políticas públicas eficazes, que possam assegurar alimentação e escolas de qualidade.
A escola ainda é uma grande aliada na luta contra essa estarrecedora forma de violência, portanto, os pais, os professores, e todos aqueles que se preocupam com as crianças, precisam estar atentos às falas, aos relatos, aos medos e às fragilidades. A escola também é um local importante para discutir sobre corpo, sexualidade, as formas de violência e os órgãos de proteção. Quanto menos debatermos sobre esse doloroso tema, mais crianças estarão a mercê desse tipo de crime.
Com a pandemia da covid-19 e o esfacelamento dos órgãos de proteção, é certo que a violência contra as crianças aumentou muitíssimo. E exatamente nesse momento algumas instituições de apoio encontram-se fechadas, para evitar a proliferação do vírus, mas é provável que no futuro próximo tenhamos que nos deparar com índices assustadores, que são fruto de denúncias reprimidas e sufocadas pela atual situação.
Diante desse quadro, a sociedade precisa estar alerta. Sabemos que as regiões de fronteira são locais de alto índice de exploração sexual, tráfico de pessoas, estupros e mortes, portanto, não há outra saída: ou denunciamos ou seremos cúmplices dessa terrível violência. Como diz o ditado popular no Brasil: quem cala consente.
Segundo os órgãos governamentais, o Disque 100, que atende todos os dias, é o número indicado para denunciar. Temos também o 190 da Polícia Militar. Outra opção é recorrer ao Conselho Tutelar. Todos os dias meninas e meninos sofrem violência sexual ou algum tipo de maltrato, que resulta em morte. Em alguns casos temos autuação dos culpados, mas o certo é que muitos desse crimes seguem impunes e a impunidade é a mola propulsora da violência. Não se omita, denuncie! Você pode fazer a diferença na vida de uma criança!
Danielle Araújo é docente da Unila, Antropóloga e coordenadora do curso de Promotoras Legais Populares da Fronteira
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