Quem sonha em fazer Medicina, no Brasil, tem que vencer um funil que termina quase fechado. Um milhão de estudantes se inscrevem todos os anos para o vestibular deste curso, em faculdades privadas e públicas. Só há 35 mil vagas.
Há ainda o "funil" social: quem passa numa universidade particular tem que arcar com uma mensalidade que varia entre R$ 5 mil e R$ 10 mil. Só consegue quem é de de classe média ou média alta.
Isso explica o êxodo do brasileiros em busca de cursos de Medicina no Paraguai, na Bolívia e na Argentina. Hoje, há 65 mil brasileiros matriculados em cursos espalhados por esses países. Só em Ciudad del Este, há 20 mil alunos.
A repórter Fabiana Cambricoli, do jornal O Estado de S. Paulo, foi conferir como são as faculdades e como vivem os brasileiros que estudam Medicina em Pedro Juan Caballero, fronteira com Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Uma vida e uma situação que não diferem muito aqui do que passam os brasileiros em Ciudad del Este.
A reportagem "Brasileiros cruzam a fronteira em busca do diploma médico" gerou também um podcast, que você pode ouvir aqui:
"Brasileiros cruzam a fronteira em busca do diploma médico"
O custo atrai
Primeiro, a vantagem de estudar fora, no caso, o Paraguai. Com os R$ 5 mil que pagariam por um curso em faculdade particular no Brasil, os estudantes arcam com a mensalidade no Paraguai, com o aluguel e com os gastos do dia a dia. E ainda sobraria dinheiro, se tivessem tudo isso.
Na verdade, grande parte dos brasileiros é de classe média baixa e provém dos mais diferentes pontos do País, inclusive do Norte e Nordeste. Alguns, pra se sustentar, vendem churrasquinhos, doces, trabalham onde conseguem uma vaga. Fazem o que for, às vezes com ajuda da família (os que são casados), que levam junto ao país que escolheram pra estudar.
Porque há também uma diferença entre os alunos de Medicina do Brasil e os que vão estudar fora: são geralmente mais velhos. Acalentavam o sonho de se formar médico, mas, sem conseguir passar num vestibular de Medicina, faziam outros cursos, como Enfermagem e Biomedicina, e agora encaram a oportunidade de estudar fora, mesmo com a barreira do idioma e tudo o que precisam enfrentar num país diferente.
Argentina, vantagens e desvantagens
De maneira geral, os brasileiros com condição financeira um pouco melhor vão estudar na Argentina, onde o custo de uma faculdade é mais alto, muitas instituições exigem cursos de nivelamento que se estendem por um semestre ou um ano antes de permitir o acesso ao de Medicina e o custo de vida no país é no mínimo oscilante, por causa de uma inflação descontrolada. E o preço dos aluguéis é exorbitante pra brasileiros.
Sem contar que é preciso aprender o espanhol, porque estrangeiros – especialmente brasileiros – são minoria, e não maioria como nos cursos do Paraguai e Bolívia. E, em Buenos Aires, não se faz muito esforço para entender portunhol. A vantagem da Argentina é a reconhecida qualidade da educação que o país oferece, o que vale também pra Medicina.
Na Bolívia e no Paraguai, o preço dos cursos e o custo de vida de maneira geral são mais baixos. O portunhol é "entendível", embora conhecer o espanhol seja muito importante.
O grande problema é que, como a demanda de estudantes brasileiros é elevadíssima, proliferam faculdades de Medicina nos dois países, algumas sem condições de oferecer bom ensino e até funcionando sem autorização do Ministério de Educação do país.
A repórter Fabiana Cambricoli visitou seis das nove faculdades de Medicina de Pedro Juan Caballero e constatou: só duas têm selo de excelência do governo paraguaio. E são exatamente as mais antigas.
Sem laboratório
Algumas das outras não têm habilitação para oferecer o curso ou têm estruturas precárias, inclusive sem laboratório decente para as aulas práticas.
Inclusive, há faculdades que não contam com laboratório de anatomia, que é essencial. E, quando existe, não há cadáver para a prática, mas apenas atlas, como contou um aluno. As bibliotecas contam com poucas obras para pesquisa.
Ela visitou a pior faculdade de todas, ainda sem autorização do MEC paraguaio. A instituição funciona numa rua de terra, num galpão de metal e não tem laboratório.
Como conta a repórter, isso acontece no Paraguai. Na ânsia de conquistar os brasileiros, às vezes uma faculdade é montada às pressas e, depois de um ano ou mais funcionando, é que consegue a autorização de funcionamento, graças também à "leniência" da legislação paraguaia.
Há mais problemas que ela aponta, no geral: deficiências no sistema de ensino, falta de professores, dificuldade na hora de emissão do diploma. Às vezes, pra conseguir algum documento, entra em cena o velho costume da propina.
E na volta ao Brasil?
Pior mesmo nem é tudo isso. Mas o que será desses 65 mil estudantes brasileiros que fazem Medicina nos países vizinhos, quando voltarem ao País?
Uma certeza salta de imediato: muitos deles, a grandíssima maioria, não poderão exercer a profissão aqui. O programa Mais Médicos, que poderia ser uma possibilidade, está ainda à espera de decisão do governo, mas é quase certo que, para participar, os médicos formados no exterior terão que fazer o Revalida.
O Revalida é uma prova em duas fases, teórica e prática. E, pelo jeito, não é fácil: só um em cada cinco que fazem os testes é aprovado.
Pior, o último Revalida foi em 2017. O número de inscritos saltou de 200, em 2011, para mais de 4 mil, em 2017, mas ainda assim longe do número dos que cursam fora.
O que está acontecendo, então, é que médicos formados nos três países vizinhos não têm muita opção. Grande parte acaba ficando mesmo no Paraguai, como constatou a repórter do Estadão. Outros, voltam ao Brasil para trabalhar em funções que às vezes estão longe da sonhada.
E é por isso que a repórter Fabiana Cambricoli usou as duas expressões entre aspas no título para definir o que sentem hoje os estudantes brasileiros que fazem Medicina no Paraguai, Bolívia e Argentina: 'incerteza e angústia".
Reportagens nossas
O H2FOZ já publicou várias matérias sobre o estudo de Medicina no Paraguai, inclusive com dicas e recomendações sobre como escolher uma instituição e o que o estudante encontra por lá.
Confira estas reportagens de Denise Paro, de junho de 2018.
Cursos de Medicina criam polo brasileiro no Paraguai
Nem todas as universidades têm certificação de qualidade
Comentários estão fechados.