“Vivemos em uma sociedade racista, que nega o racismo”, afirma professora

Angela Maria de Souza aborda políticas públicas, educação e cidadania contra o racismo estrutural; assista à entrevista.

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A sociedade brasileira privilegia pessoas brancas. O que os direitos formais garantem, barreiras impedem o acesso de modo equânime, reproduzindo desigualdades. São facetas do racismo estrutural que precisam ser identificadas e combatidas, expõe a professora universitária Angela Maria de Souza, no programa Marco Zero, do H2FOZ e Rádio Clube FM 100,9.

Assista à entrevista:

Na entrevista, a docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) desmonta a engrenagem do racismo e seu modo de operar, muitas vezes sutil, que chega a salvaguardar racistas para culpabilizar suas vítimas. Aponta a importância de políticas públicas e ações afirmativas, e reforça o papel do que chama de educação cidadã na abordagem das relações étnico-raciais. E realça o que considera “diversidade seletiva” em Foz do Iguaçu.

As pessoas pensam o racismo estrutural como algo distante, o que não é.  “Muito pelo contrário. Ele está tão próximo de nós que muitas vezes não conseguimos percebê-lo. Essa é uma das artimanhas do racismo, funcionar a partir de uma invisibilidade”, menciona.

As práticas racistas adquirem muitas formas e variações, geralmente associadas a relações interpessoais, como xingamentos e desqualificação das pessoas negras. Porém, é mais do que isso, incidindo nas organizações e instâncias políticas, econômicas, governamentais, também no espaço da educação, frisa.

Conforme a docente, os dados oficiais revelam como a “desigualdade está estruturalmente organizada na nossa sociedade, boa parte dela sendo fruto do racismo e também do racismo estrutural”, sublinha Angela. E indica ser necessário pensar no âmbito micro, das relações interpessoais, mas também no da institucionalidade, que engendra normas e regramentos perpassados por práticas racistas.

Cita como efeito do racismo estrutural o perfil masculino, branco e de classe média que prevalece nos espaços de poder, resultado das eleições, nas grandes empresas e em parte do serviço público. Em sua explanação, explica o conceito de “racismo por denegação”, da pensadora brasileira Lélia Gonzalez.

“É trazer para a nossa consciência hábitos estabelecidos para, a partir daí, mudar as práticas pessoais”, diz. “Mas ‘racismo por denegação’, de forma muito rápida, seria vivermos em uma sociedade racista que nega o racismo. Todos têm direitos, mas as condições de acesso não são as mesmas para todos”, denuncia. 

Como exemplificação, elenca as diferenças que pesam para um jovem de periferia e outro da classe média no acesso ao ensino superior. “É preciso desindividualizar a responsabilidade pelo racismo. Não é problema da pessoa, mas das condições que não permitem que elas tenham acesso de forma igual”, adverte Angela de Souza.

Para ela, toda a política pública deve contemplar recorte racial e de gênero para atender a população que realmente precisa da ação governamental. Quando se identificam desigualdades, essa relação de raça e gênero está muito importante nos indicadores, argumenta. 

Mulheres negras

Mulheres negras representam o maior grupo da sociedade brasileira, com 28% da população. E são elas as que estão na base das desigualdades, critica a professora, lembrando que são a maioria a chefiar lares, ainda em condições bastante precarizadas. E enfatiza que não é válido abordar só dados negativos. 

“Ressalto a importância das mulheres no movimento político-partidário para alcançarem espaços sociais muito pouco visibilizados ou  considerados pouco possíveis para as mulheres negras”, lembra. “Mas temos representações políticas de extrema importância, com pautas principalmente voltadas para a infância, juventude e mulheres negras”, salienta Angela Souza.

No Marco Zero, a professora contextualiza o papel de Antonieta de Barros, a primeira mulher negra eleita no Brasil, na década de 1930, período recente à abolição e ao direito ao voto feminino. “Ela conseguiu o feito de se eleger nesse tempo. Mas destaco que ela também defendia uma educação para todos”, resgata.

“Ela fazia alfabetização de adultos em sua própria casa, em Florianópolis”, rememora. “Naquela época, já reivindicava uma educação cidadã, que considerava uma porta de emancipação da pessoa. Estava muito à frente de seu tempo. Em 2024, estamos lutando por várias questões que ela já coloca naquela época. Antonieta de Barros foi um exemplo”, exalta.

Foz do Iguaçu e a “diversidade seletiva”

A partir das elaborações e temáticas que pautam a atuação do Conselho Municipal de Promoção e Igualdade Racial (Compir), Angela de Souza, observando a partir da população negra e indígena, argumenta que Foz do Iguaçu tem uma longa caminhada para chegar à efetiva diversidade. Essa pluralidade está mais presente no discurso e na exposição da cidade como turística.

“Temos que pensar que diversidade é essa, pois há uma seletividade”, instiga. “O que o Compir reivindica é que essa diversidade seja vista em toda a sua dimensão, e não com a desigualdade que é o que marca grande parte das populações negras e indígenas, infelizmente”, pondera a docente.

 

Educação e relações étnico-raciais

As leis 10.639 e 11.645 estabelecem a inclusão da temática da história e cultura afro-brasileira e indígena na educação. São resultado de luta política de décadas da população negra, frisa Angela Souza. Mas, por outro lado, materializam uma grande contradição: é preciso de lei para ter a diversidade e a população negra e indígena no currículo da educação, recobra.

“Temos que nos realfabetizar no sentido de pensar que muitos desses conhecimentos foram expulsos da educação”, propõe. “Temos que reaprendê-los e trazê-los para dentro do espaço da escola formal. E estou me referindo às comunidades indígenas e quilombolas, hip-hop, capoeira, religiões de matriz africana, que também são movimentos educadores que produzem conhecimento, para a escola trabalhar com, não sobre esses movimentos”, reivindica Angela.

No contexto da educação cidadã e antirracista, comenta sobre a formação que coordena desde 2012, denominada “Educação para as relações étnico-raciais, destinada à implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 no currículo escolar”, para professores. É um curso de extensão dentro dos projetos da Unila.

Lembra que há problemas de racismo dentro dos espaços de educação, muitas vezes não tratados adequadamente por falta de compreensão. E cobra que toda a sociedade e a comunidade docentes devem comprometer-se com o seu enfrentamento. “Porque muitas vezes essa responsabilidade recai somente sobre professores e professoras negras.”

A sociedade, em seu conjunto, deve conhecer o funcionamento do racismo estrutural, apropriar-se das práticas antirracistas para agir socialmente e pessoalmente, convoca a professora Angela. Para ela, o objetivo é que todos, sem diferenças, sejam cidadãos, inserindo a reflexão da professora Soeli Carneiro.

“Ela vai nos dizer que ainda não temos uma sociedade de fato democrática, pois para sermos uma democracia precisamos de cidadania”, declara. “Se vivemos o racismo, como ele marca nossos corpos e vidas, não temos acesso à cidadania. Não somos – pessoas negras e indígenas – vistos pela sociedade como cidadãos. Isso marca e expõe o racismo da sociedade brasileira e também fala o quanto precisamos atuar para que essa cidadania seja efetiva”, encerra Angela Maria de Souza.

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