* Eliana Tao
Em uma madrugada de dezembro, de um ano excepcionalmente difícil e complicado para mim, argumentando necessitar de alguém confiável, fui procurada por uma pessoa com quem convivi por um tempo na minha trajetória profissional. Senti-me honrada pela escolha, pois é assim que muitas relações começam, tenham elas um desfecho bom ou não.
Em pouco tempo, percebi que a confidência se tratava de um episódio íntimo que encontrou na confiança cada vez mais espaço para acontecer. O vizinho era casado e também pai, passava a todos a imagem de trabalhador, prestativo e, de maneira muito natural, passou a frequentar a casa de uma família, transformando-se na companhia constante do tão apreciado chimarrão.
Assim a aproximação e o carinho do homem com o menino – que tinha de 6 para 7 anos – pareciam desimportantes, visto que o amigo era pai de meninas e com o convívio os dois podiam partilhar brincadeiras comuns, já que a mãe do garoto não o deixava ficar na rua com outras crianças por acreditar não ser seguro. Tudo normal até aí? Só que não.
Numa tarde qualquer de 1991, o homem, de aproximadamente 35 anos, perguntou se poderia levar o guri para jogar bola. A mãe do pequeno consentiu, afinal seu filho estaria na casa ao lado, com uma pessoa conhecida. Depois de duas horas de diversão, o garotinho, cansado, pediu água: “O que mais gosta é de brincar com a bola, mas agora eu vou mostrar do que o tio mais gosta…” Eis que o abuso sexual acontece pela primeira vez. “Lógico que eu queria contar para minha família, mas ele me ameaçou dizendo que se alguém soubesse machucaria minha mãe e eu não poderia em hipótese alguma arriscar”, recorda.
O pequenino sempre foi tranquilo e de pouca fala, de modo que não despertou nos pais e demais parentes nem a mais remota desconfiança sobre o ocorrido. E tal comportamento tímido e reservado era perfeito para a violência voltar a ser praticada, mudando somente o motivo para estarem próximos com o passar dos anos: uma companhia para as brincadeiras que gastavam muita energia; dar suporte na limpeza do quintal do homem enquanto a esposa estava no trabalho e as filhas, na escola; ajudar nos bicos como cortador de grama…
O último pretexto do vizinho “com alma de anjo” foi contratar o adolescente informalmente como ajudante de pintor, dando a ele a oportunidade de aprender uma profissão e proporcionando para a família uma renda extra, por se tratarem de pessoas com poucos recursos financeiros.
Mas a generosidade tinha outra face, tal qual Jay Vaquer descreveu na canção Mondo muderno (de mierda): “Tudo que faço é pra mim, até a bondade que ofereço”, pois “dos meus 11 até meus 13 ou 14 anos eu era abusado a semana toda por ele para ter muito trabalho de pintura. Lembro que no começo eu tinha medo, mas aquilo virou tão rotineiro que eu já não sentia dor pela chamada primeira parte do pagamento: só assim eu recebia a diária em dinheiro pelo serviço de ajudante”, explica a vítima.
Contudo, um dia a vida dupla do jovem teve fim: “Meus pais me falaram que ele foi embora com a família porque a esposa estava com câncer, precisando fazer tratamento em Curitiba, e essa informação gerou uma combinação de sentimentos em mim, mesclando raiva, tristeza e desprezo”. Além de deixar marcas, conta: “Percebi que eu não sentia desejo por jovens do sexo oposto, ainda sem saber que o que eu passei não era certo; eu só fui entender que aquilo era abuso sexual infantil quando eu completei 15 anos, depois de uma palestra sobre o tema na escola”.
E o tempo passou… o jovem cresceu, prosseguiu com os estudos, tornou-se um homem, conquistou espaço no mercado de trabalho, sem esquecer o quesito afetivo com o qual construiu um relacionamento heterossexual de anos, reconhecido no civil e no religioso.
Todavia, 24 anos depois, “o fantasma do passado voltou para me assombrar: encontrei com ele inesperadamente em uma rua qualquer de Foz”, afirma. Como se isso não bastasse, soltou um “eu sinto a sua falta”, disse o agressor para a vítima.
A frase dita ao pé do ouvido gerou um turbilhão de sentimentos no agredido, afinal teve a sexualidade influenciada em razão dos anos de violência que sofreu. Confuso, os desejos se misturaram, tendo vontade de esbravejar: “Sai de mim que esse ‘eu te quero’ já não me convence mais e agora já nem me incomoda. (…) Só estou aberto a quem sempre foi do bem e agora estou fechado pra você. Não, não, não venha pra cá que eu não quero mais saber de você”. Ou escancarar: “Eu gosto de meninos e meninas”, como fez Renato Russo.
Sentiu ainda renascer uma espécie de dependência físico-química de estar novamente na companhia daquela criatura, semelhante a caça e caçador, como Maroon 5 confessa em Animals: “O que está tentando fazer comigo? Não conseguimos parar. Somos inimigos, mas nos damos bem quando estou dentro de você. Você é como uma droga que está me matando”.
Acredito que o leitor deve estar perguntando-se sobre a identidade das pessoas, e eu digo que o nome delas é o que menos importa, pois a intenção não é conseguir alguns minutos de notoriedade, como fez uma antiga apresentadora infantil tempos atrás.
Marco, Fabiana, Bianca, Renan…, chame como quiser. Muitos podem ser os nomes de quem pratica ou sofre a violência: o objetivo é alertar os pais sobre o que acontece com os seus pequenos e pequenas, pois nos casos de abuso sexual infantil os agressores estão camuflados entre familiares e pessoas próximas.
Na maioria das vezes, pais e responsáveis não conversam sobre sexualidade com seus filhos por acreditarem ser um tema inapropriado para crianças. Todavia alertar os filhos, sobrinhos, netos… desde cedo é um modo de proteção: usar uma linguagem lúdica para explicar sobre o inadequado do toque nas partes íntimas, pedir para crianças fazerem fotos ou vídeos seminuas ou nuas, além de recusar presentes e conversas com estranhos tanto no mundo real quanto no virtual.
Se mesmo com todas as orientações a criança ou adolescente sofrer algum tipo de violência sexual ou de outra natureza, a vítima e seus familiares contam com uma rede apoio para a superação de episódio tão traumático: busque ajuda, supere o medo, o constrangimento, não se cale, denuncie.
* Eliana Tao é jornalista em Foz do Iguaçu.
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