Modernidade e tradição nas propostas elaboradas pelo arquiteto Angelo Murgel para os Parques Nacionais: o Parque Nacional do Iguassú e o seu aeroporto

Os projetos desenvolvidos para as sedes dos Parques Nacionais, por Angelo Murgel(1), foram definidos a partir de um plano de conjunto, incluindo diversas instalações, para permitir o funcionamento dos mesmos como centros de estudo, de educação e de entretenimento.

Fabio Jose Martins de Lima *

Os projetos desenvolvidos para as sedes dos Parques Nacionais, por Angelo Murgel(1), foram definidos a partir de um plano de conjunto, incluindo diversas instalações, para permitir o funcionamento dos mesmos como centros de estudo, de educação e de entretenimento. A criação dos parques integrava as ações do Ministério da Agricultura, particularmente junto ao Serviço Florestal, no tocante à conservação dos recursos naturais. Para o arquiteto Angelo Murgel era mais uma oportunidade de experimentação, atrelada à Seção de Arquitetura e Engenharia deste órgão, na qual ele colocava em prática as suas idéias arquitetônicas e urbanísticas. A temática da proteção das unidades de conservação, como parques nacionais, era nova no Brasil, o que levou Murgel a desenvolver estudos e pesquisa ampla, como forma de enfrentar as dificuldades referentes às fontes referenciais para o desenvolvimento das propostas. Neste sentido, na implementação dos parques, de acordo com a experiência Norte-americana, era ressaltada a necessidade prévia de um estudo criterioso, “…por uma equipe de técnicos de tôdas as especialidades a fim de se constituir o ‘master plan’, plano diretor.”(2) 

Os parques nacionais brasileiros foram criados entre os anos de 1937 e 1939, por decretos do governo federal. elo Decreto nº 1713, de 14 de junho de 1937, foi criado o Parque Nacional do Itatiaia, na região das Agulhas Negras, na Serra da Mantiqueira, compreendendo área situada nos estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro; pelo Decreto nº 1035, de 10 de janeiro de 1939, o Parque Nacional do Iguaçu, localizado no extremo oeste do estado do Paraná, nas divisas do Brasil com a Argentina e o Paraguai; pelo Decreto nº 1822, de 30 de novembro de 1939, o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, situado entre as cidades de Teresópolis e Petrópolis, abrangendo também terras pertencentes aos municípios de Guapimirim e Magé.

Os planos desenvolvidos para os parques consideravam programas semelhantes, em função da dinâmica destas unidades de conservação, que abrangia serviços e moradias, hospedagem, centros de estudos e lazer. No caso do Iguaçu, o plano envolveu também as instalações referentes ao aeroporto e hotel. A implantação geral envolvia o traçado de uma via de penetração que conduzia às diversas instalações, com vias secundárias para acesso local. Para a composição das edificações e equipamentos, assim como para a abertura do sistema viário, buscou-se uma adequação à topografia do lugar. Na linguagem empregada para o conjunto arquitetônico, tendo as construções dispersas pelas áreas dos parques, predominava o Neocolonial, cujas origens remontam à tradição construtiva brasileira, particularmente no repertório da arquitetura colonial portuguesa. Além de ter feito uma opção por esta linguagem, Murgel acrescentava materiais e acabamentos rústicos enfatizando o vínculo destes componentes ao lugar. 

Pedras brutas, madeiras, estas ora trabalhadas e aparelhadas, ora não, se conjugavam com paredes revestidas em argamassa e pinturas. Os telhados, compostos com madeiramento e telhas cerâmicas do tipo capa e canal, se sobressaiam, estendidos em avarandados e pórticos, interrompidos por frontões decorados. Os interiores eram minuciosamente trabalhados com pisos cerâmicos, revestimentos e pinturas, com aberturas em esquadrias de madeira e panos de vidro. Tanto para os equipamentos quanto para as moradias de técnicos e diretores, bem como abrigos e alojamentos, a concepção seguia esta orientação. A exceção, ficava por conta das moradias de trabalhadores, projetadas com simplicidade, com programa mínimo composto por quartos, cozinha e banheiros, e cobertura em duas águas.

No geral, a comodidade da composição dos parques, bem como o conforto das edificações, mesmo com os acabamentos executados, estavam centrados no aspecto de rusticidade. Os planos destas unidades de conservação consideravam estes princípios, aplicados para a harmonização dos conjuntos, independente de se tratarem de edificações ou obras de arte, como pontes, aquedutos, ou mesmo coletores de águas pluviais. O que se pretendia, com isso, era uma adequação do partido global ao seu entorno natural, com os equipamentos inseridos em meio às áreas florestadas.

O projeto dos parques envolvia, assim, um trabalho contínuo e homogêneo, que, para Murgel “…em trabalhos de tal natureza os erros se não corrigirem e qualquer medida extranha aos estritos interêsses do Parque podem comprometer definitivamente a obra. É necessário que se reúna um grupo de zoólogos, botânicos, arquitetos, engenheiros, paisagistas, etc., com pendores pessoas para êsse assunto, a fim de que se constitua a escola brasileira de parques nacionais, de que se crie entre nós a mentalidade própria do colaborador de parque, com que se poderá então, dispondo de necessária autonomia administrativa, promover com sucesso a formação dos nossos parques.”(3)  

O Parque Nacional do Iguaçu teve a sua sede instalada em relevo relativamente plano, entre duzentos e cinquenta e trezentos e cinquenta metros de altitude. Além do aeroporto, foram projetados o edifício-sede, os alojamentos para pesquisadores, o museu, as residências de funcionários e as instalações sanitárias. Ainda foram projetados um hotel, com garagem e oficinas, um centro de esportes, um horto botânico, um jardim zoológico, um almoxarifado e oficinas. O hotel foi definido como um bloco horizontal, em dois pavimentos. Este bloco principal era interrompido por torre de marcação vertical, com vista privilegiada para as Cataratas do Iguaçu. Além disso, foi definido um anexo, com pátio interno, no qual foram instalados os serviços. O prédio foi composto a partir de um partido em “U”, com os quartos dispostos ao longo do conjunto. A hospedagem era privilegiada pela visão direta para as cataratas e pela área de lazer, aos fundos, contígua à reserva florestal.

Parque Nacional do Iguassú, as Cataratas e o hotel, por Angelo A. Murgel, em 1970, proposta de ampliação – fonte: Acervo pessoal de Angelo A. Murgel.

A viagem ao parque, por via aérea, constituía um momento especial para Murgel, que reiterava “…o dinâmico panorama do progresso da Paulicéa, as vistas aéreas da Serra do Mar, Curitiba com seus graciosos arrabaldes, os pinheirais paranaenses, as muralhas chinesas e os castelos feudais das curiosíssimas formações areníticas de Vila Velha, a mata virgem e impenetrável que se estende de Guarapuava até a Foz do Iguaçu, e, por fim, quando o aéromoço anuncia ‘falls at the left’ ou, descendo mais o avião, ‘now, at two side’, pelas minúsculas janelas do ‘clipper’ descortina-se o que nunca antes se pudera conceber: o panorama completo das Cataratas do Iguaçu!”(4)   

O projeto para o aeroporto foi pensado a partir do prédio da Estação de Passageiros que incluía a torre de controle e as salas para os serviços técnicos. Este conjunto se ligava à pista para aterrisagem e decolagem.  A inserção do aeroporto foi em área contígua ao centro urbano, cerca de 20 quilômetros das cataratas, estas situadas na tríplice divisa entre o Brasil e a Argentina. A proposta foi elaborada em bloco único com três pavimentos, tendo jogo de telhados destacado, que se revelava na composição. No telhado, foram dispostas mansardas para reforço da iluminação e mãos francesas para ampliar os vãos. Além destes, um frontão de acesso marcava a entrada no pórtico principal. No térreo, foram compostos sala de embarque, banheiros e administração. No primeiro pavimento, as salas dos engenheiros e dos pilotos, foram separadas por banheiro, além da sala de rádio e meteorologia.

Estes compartimentos tinham acesso em separado através de escada com dois lances paralelos. No segundo pavimento foi definida a torre de controle. As aberturas dos compartimentos seguiam o que foi mencionado anteriormente, de maneira geral, compostas em janelas e portas com esquadrias de madeira e panos de vidro, sendo que no caso das janelas, estas incluíam venezianas e, no caso do térreo, grandes panos em arco pleno. O projeto teve um forte apelo paisagístico, marcado por caramanchões, lago e fonte em arranjos cuidadosamente ajardinados, com elementos rústicos construídos como imitação de elementos naturais.

Aeroporto do Parque Nacional do Iguassú, por Angelo A. Murgel, em 1941 – fonte: Acervo pessoal de Angelo A. Murgel.

Estes componentes integrados ao programa serviam para emoldurar a chegada ao centro urbano e, a partir dali, no itinerário . O edifício do aeroporto já estava concluído em 1941, com o seu bloco único mencionado, composto por amplos beirais e portada de acesso para os passageiros, como um vestíbulo abrigado, esta última coroada pelo frontão, mencionado anteriormente. Na parte superior, logo abaixo do volume destacado da torre-mirante, foi disposto um avarandado, suportado por mãos francesas em madeira, com acesso privativo aos técnicos do controle aéreo.

Os projetos dos parques nacionais se colocavam como uma oportunidade sem igual para a consolidação da trajetória do arquiteto Angelo Murgel e a sua projeção no âmbito nacional. A diversidade dos contextos, onde os mesmos se inseriram, bem como a amplitude dos programas de necessidades, permitiram experimentações várias que, no entanto, se mostraram congruentes, pelo uso dos materiais e das técnicas construtivas. Neste sentido, a linguagem assentada no Neocolonial, como mencionado, proporcionou uma identidade aos conjuntos projetados, esta espelhada numa expressão nacional, tipicamente brasileira, por assim dizer, cunhada nos manifestos do modernismo contra a importação de modelos.

Assim, a poética implementada com os parques nacionais revelou-se como uma tentativa de conciliação da tradição com a modernidade, no viés da cultura brasileira, esta relacionada com a colonização portuguesa. Entretanto, considerando a inserção de vertentes do Movimento Moderno, no período, esta opção se mostrava bastante defasada, particularmente na adoção do ideário Corbusieriano em projetos como o do Ministério da Educação e Saúde, em 1936, dentre outros. Vale dizer que, em outros trabalhos, Murgel compactuava com estes princípios modernistas.

Por uma cidade moderna, de Fabio Jose Martins de Lima – foto Divulgação

Nos projetos para os parques, os princípios e as idéias defendidas ao longo da sua atuação, em particular  os  argumentos  voltados  para  a  introdução de  uma  Arquitetura  Moderna foram revistos. No entanto, mesmo que enraizados no colonial, grandes panos de vidro proporcionavam uma integração entre o interior e o exterior, estes emoldurados por grandes vãos, pelo uso do concreto armado e estruturas de madeira. De um lado, a materialidade dos componentes expressava tradição, de outro lado, os sistemas construtivos deixavam implícitas inovações inerentes ao uso das novas tecnologias.

Os atributos de  racionalidade e funcionalidade se colocavam “…dentro da sua verdadeira  acepção,  sem  falseamento  ou  compromissos dos  inexplicáveis  e injustificáveis  grupos  partidários  em  matéria  de  arquitetura;  o  trabalho  deverá  ser feito  com  essa  simplicidade  e  com  essa  naturalidade com  que  o  homem  nos  seus estágios mais primitivos sempre resolveu o problema de suas habitações.”(5) Apenas o essencial, em termos de materiais, deveria ser trazido de fora, tendo em vista que os principais  componentes  para  as  construções  eram  obtidos “…’in  loco’ lançando mão dos recursos  regionais e  aplicando-os  de  modo a obter  o máximo  efeito, consoante uma  técnica  adequada.”(6)

De qualquer modo, a linhagem cultural portuguesa reinventada e adaptada às unidades de conservação e aos seus anexos, como no caso do Parque Nacional do Iguaçu, com o aeroporto e o hotel, aqui explorados, reiterava traços da colonização brasileira. E foi o que prevaleceu nos trabalhos de Murgel, junto ao Ministério da Agricultura, entre os anos 1940 e 1950, nesta opção assentada pela busca da adaptação dos programas aos diferentes contextos. A ênfase, nestes casos, como ressaltado foi o aspecto rústico das composições. Nos anos 50, Murgel aprofundou os seus estudos relacionados com o conceito de arquitetura rural, discorrendo sobre a Casa Rural Brasileira, priorizando o enfoque sobre os sistemas construtivos tradicionais. As  preocupações  referentes  à  forma prevaleceram nos seus trabalhos, o que culminou na tese intitulada “Análise do Belo”, desenvolvida  em  1962,  que  discorreu  sobre  questões estéticas,  segundo  olhares múltiplos, e em particular na visão filosófica sobre o “belo”.  

A  contribuição  de  Murgel  incide  também  na  constituição  de  um  campo profissional específico relativo à arquitetura e ao urbanismo, além de ter contribuído para  a  formação  acadêmica  de  inúmeros  profissionais.  Os  projetos  e  planos  que elaborou  são  reveladores  das  possibilidades  do  diálogo  entre  a  tradição  e  a modernidade na configuração de ambientes urbanos e rurais. Ao mesmo tempo, constatamos nos seus projetos as contradições inerentes à prática profissional pelo distanciamento do  discurso  em  relação  às  práticas. Se  por  um  lado defendia  intensamente  uma modernidade  atrelada  aos  princípios  do  Movimento  Moderno,  as  soluções por ele apresentadas não incorporavam plenamente os componentes  relacionados  a  este ideário. Na continuidade do seu trabalho, o emprego explícito deste ideário será progressivo, o que, no entanto, como ressaltado, não se materializou nos conjuntos dos parques nacionais.

* Fabio Jose Martins de Lima é Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (1989) com Mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (1994) e Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (2003). Coordenador do grupo de pesquisa Urbanismo em Minas Gerais – Urbanismo.mg/FAUUFJF, que inclui atividades de pesquisa e extensão com o apoio da FAPEMIG, CAPES, CNPq.

Notas bibliográficas:

1. O arquiteto Ângelo Alberto Murgel teve uma atuação dividida entre trabalhos acadêmicos, como professor, e vasta incursão no meio profissional. Murgel nasceu em Cataguases/MG, em 8 de agosto de 1907, e faleceu no Rio de Janeiro, em 20 de agosto de 1978. Diplomou-se pela Escola Nacional de Belas Artes – ENBA , em 24 de dezembro de 1931, onde retornaria como professor. Destacou-se como estudante, quando obteve a grande medalha de ouro de 1932. A tese Um edifício para os Correios Geraes e Telegraphos do Rio de Janeiro, datada de 1932, foi apresentada no Concurso de Grau Máximo à Comissão Técnica e Didática da ENBA. Transferiu-se  para  Belo  Horizonte,  no  mesmo  ano  da sua  formatura,  tendo  desenvolvido  inúmeras propostas  para  a  cidade,  além  de  projetos  para  outras  cidades  mineiras  e  o  ensino  na  Escola  de Arquitetura da, então Universidade de Minas Gerais, atual UFMG. A sua vinculação ao Ministério da Agricultura, em 1937, fêz com que retornasse ao  Rio  de  Janeiro,  onde  fixou  residência.  Seguiu  a sua  atuação  profissional,  com  diversos  projetos  no âmbito  do  Ministério, bem como no âmbito da capital,  e,  posteriormente  no  ensino  da,  então  Faculdade  Nacional  de  Arquitetura,  antiga E.N.B.A. Ver: LIMA, Fabio Jose Martins de. Por uma Cidade Moderna: Ideários de Urbanismo em jogo no Concurso para Monlevade e nos projetos destacados da trajetória dos técnicos concorrentes (1931-1943). São Paulo, 2003. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU /Universidade de São Paulo – USP.

2. MURGEL, Angelo A.. Parques Nacionais. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p7.

3. MURGEL, Angelo A., op. cit. p.8.

4. MURGEL, Angelo A., op. cit. p.16.

5. MURGEL, Angelo A., op. cit. p.26.

6. MURGEL, Angelo A., op. cit. p.26.

Referências bibliográficas:

LIMA, Fabio Jose Martins de. Por uma Cidade Moderna: Ideários de Urbanismo em jogo no Concurso para Monlevade e nos projetos destacados da trajetória dos técnicos concorrentes (1931-1943). São Paulo, 2003. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU /Universidade de São Paulo – USP.

___.  Tradição  e Modernidade  no  percurso  do  arquiteto  Angelo  Murgel –  Parque  Nacional do   Itatiaia   e   Universidade   Rural   do   Rio   de   Janeiro, dois   projetos urbanísticos. Seropédica: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2003, v. 1.

___. Urbanismo em Minas Gerais: ideários urbanísticos aplicados aos parques nacionais por Angelo A. Murgel (1932-1942). URBANA: Revista Eletrônica Do Centro Interdisciplinar De Estudos Sobre a Cidade, 2013, 5(1), 117-147. https://doi.org/10.20396/urbana.v5i1.8635090
MURGEL, Angelo A. Parques Nacionais. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.

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