Não existe cidade sem história. Existe história não contada
Jackson Lima
O dia 10 de junho de 1914 é tido como o início da história de Foz do Iguaçu. De igual maneira o ano de 1939 aparece como o ano de fundação do Parque Nacional do Iguaçu. As duas datas estão corretas. Porém o que se deixa passar em branco é o que aconteceu antes destas datas. Entre 1888 e 1914 muita coisa aconteceu.
Entre outras, o que hoje é Foz do Iguaçu passou 20 anos como Colônia Militar. Em uma colônia militar, não há impostos como IPTU, ISSQN. Não se compra, troca ou se vende terreno. Ninguém é eleito. E quem manda é o comandante.
Quanto ao Parque Nacional do Iguaçu, se pode dizer a mesma coisa. Antes do PNI ser fundado, há toda uma história que começou em 1913. O ponta-pé inicial foi a lei Estadual 1.260 de março daquele ano. A lei criava pela primeira vez, no Paraná, a possibilidade de se desapropriar terras por questões de “interesse público”. Ninguém tinha idéia como essa lei iria ser utilizada. No mesmo ano, em junho, a Lei foi regulamentada pelo Decreto 460 publicado no Diário Oficial do 19 daquele mês. Porém se voltou a falar desta lei, no que se refere à Foz do Iguaçu em 1916.
Em uma colônia militar ninguém compra terreno. Ou pelo menos ninguém deve comprar terreno. As pessoas que vem morar em uma colônia requerem um lote. No caso da Colônia Militar do Iguassu, havia dois tipos de lotes. O lote rural, para agricultura e um lote em algum lugar que um dia será chamado de urbano. Em 1905, já sentindo o cheiro da possibilidade de mudança no ar, o comando da Colônia Militar do Iguassu deu instruções que se desse início a um Registro de Colonos que viviam na CMI.
A primeira página do Livro para Matrícula de Colonos da Colônia Militar foi ocupada por um colono espanhol, de 47 anos, chamado Jesús Val.
Segundo o registro, Jesús Val, 47 anos, casado, era residente na Colônia desde 1897. Ele recebeu da Colônia Militar um lote de 1.008 hectares para fins agrícolas. O lote de Jesús Val ocupava a margem do rio Iguassu. Junto aos Saltos de Santa Maria. Jesús Val não parecia ser um colono comum.
Ele se identifica como fazendeiro, anos mais tarde, e como residente no Paraguai. O sargento escrevente fez questão de deixar registrado que recebera um telegrama urgente do Ministro da Guerra pedindo que se demarcasse o lote do colono com caráter de urgência. Por quê?
Jesús Val era o feliz dono do Lote onde hoje estão as Cataratas. E segundo o documento Jesús Val já tinha um “hotel” no local. O hotel do espanhol aparece como marco de orientação na demarcação. Então se o terreno era de Jesús Val, que negócio foi feito com os Engel? Era alugado? Foi uma concessão? Como aconteceu? Quem construiu o hotel? São perguntas que para serem respondidas necessitam de documentos, contratos, recibos eu podem estar perdidos no tempo.
Época de transição
A Colônia Militar do Iguassu conseguiu afirmar a presença brasileira na região. Mas não conseguiu trazer prosperidade. Tudo era longe. O “colonial” (quer dizer o iguaçuense da época) não tinha estímulo para produzir. Esta era uma região dominada pela erva mate – indústria que perduraria até 1936. Para fazer dinheiro, ou o “colonial” trabalhava nos ervais ou tirava madeira e rezava para que a terra se valorizasse um dia. Por fim, o Governo da República, decidiu entregar a Colônia ao Estado do Paraná. Veja o que diz um dos maiores historiadores do Paraná:
“Os colonos que ganharam lotes de terra nos domínios da colônia tinham por obrigação principal produzir agricultura de subsistência. Mas tal não ocorria. Os que abandonaram a colônia passaram a extrair a erva mate e cortar madeiras.Com o tempo deixaram seus lotes e foram predar as terras e matas do governo. Os próprios oficiais para lá destacados consideravam-se desterrados.
Aproveitavam pois o tempo para melhorar sua situação financeira através do contrabando… como a colônia não prosperasse, em 1912 foi entregue à administração do Estado”. (Rubem Waschowich, Obrajeiros, Mensus e Colonos, p.226)
No dia 6 de fevereiro de 1913, o primeiro tenente-escrivão Arcelindo Clarindo de Paula escreve no Livro para Matrícula de Colonos: “Por ordem do Sr. capitão Francisco Cordeiro de Oliveira Rosa, diretor da Colônia, encerro a escripturação deste livro, por ter sido segundo comunicou-se ao tenente-coronel Frederico Luiz Rossany, chefe do estado Maior do Exército em telegrammas de 4 e 6 de fevereiro, por Decreto número 1002 de 29 de janeiro, tudo do corrente anno, mandada a Colônia Militar passar a regime civil. Colônia Militar do Iguassu, 6 de fevereiro de 1913.
Entre 1912 e 1914 a Colônia estava sob a administração do Município de Guarapuava. Mas quando nasce uma cidade? No dia em que o primeiro prefeito e primeira Câmara assumem? Ou no dia em que sai o decreto que cria a cidade? Bem, o Decreto que cria Vila Iguassu é do dia 14 de março de 1914. A inauguração do Município de Vila Iguassu só ocorreu no dia 10 de junho de 1914. Um ano após a Lei que previa a desapropriação de terras. Naquele dia, tomou posse o prefeito Jorge Schimmelpfeng cujo nome já aparece no Livro para Matrícula de Colonos desde 23 de maio de 1906. Ele tinha então 30 anos e era viúvo. No livro aparece também Jorge pedindo licença para ausentar-se da colônia por motivos particulares.
Na posse Schimmelpfeng fez um longo e emocionado discurso. Ele disse aos iguassuenses: “não quero que a única diferença entre a Colônia Militar do Iguassu e o Município de Vila Iguassu sejam os impostos…que vamos cobrar. O discurso de Schimmelpfeng foi publicado na íntegra no Diário Oficial do Paraná no dia 19 de agosto de 1914 e se encontra preservado na Biblioteca Pública do Paraná. A Lei número 2 da Vila Iguassu tratava sobre as fontes de renda e imposto. A lei tratava com detalhes sobre a necessidade de organizar um matadouro, cobrar impostos das terras e sugeria algumas multas urbanas.
Enquanto isso, no Parque
A primeira vítima “iguassuense” da Lei 1.260 agora regulamentada pelo Decreto 460 foi o colono ou fazendeiro Jesús Val. No dia 31 de julho de 1916, o Diário Oficial publicou o Decreto 653 que declarava as 1.008 hectares dele como de “utilidade pública”. Segundo o Decreto, a área de terra em frente às Cataratas seria reservada para o estado. E o que o estado faria com ela? “Um parque e uma povoação”. Este foi um momento de grande iluminação do Estado do Paraná. E um momento de pesadelo para Jesús Val. Como estaria a área das Cataratas, se Jesús Val ainda fosse o dono da terra? É sempre interessante perguntar como seria?
Jesús Val não gostou. Entrou na Justiça para reaver a sua terra. Nos documentos dessa época, Jesús Val já aparece como viúvo e residente em Puerto Colón, Paraguai. Para acompanhar o processo jurídico, ele constituiu o cidadão brasileiro Dr. Antonio Joaquim Alves de Farias, engenheiro civil e solicitador residente na capital para “promover a ação contra o Governo do Paraná, para indenização dos prejuízos que lhe causa o Decreto 653 de 28 de junho de 1916 (data anterior à publicação no DO) e acompanhar processo em primeira e segunda instâncias…”.
O engenheiro Antonio Alves de Farias continuou procurador de Jesús Val até 1919. No dia 13 de março, o engenheiro Farias passou a procuração para outro cidadão, Leopoldo Frederico Pereira, telegrafista-chefe e residente em Curitiba. Quatro meses depois, no dia 10 de julho, o processo Jesús Val contra o Estado do Paraná, chegou ao fim. Jesús Val desistiu do processo e negociou ainda em primeira instância.
No acordo, Jesús Val vendeu as 1.008 hectares de sua propriedade por 298:716$322 (Duzentos e noventa e oito contos, setecentos e dezesseis mil, trezentos e vinte dois réis). Deste total, 297:900$00 (Duzentos e noventa e sete contos e novecentos mil réis) ele recebeu em apólice do Governo. O restante, 816:322 (Oitocentos e dezesseis mil, trezentos e vinte e dois réis) ele recebeu em moeda corrente.
O professor e economista Daurí Braga Brandão, da Uniamérica fez um cálculo, a pedido do autor, para saber qual é valor em dinheiro atual que Jesús Val recebeu. O cálculo de 18 páginas concluiu que o valor total corrigido é de R$ 127.888, 87 (cento e vinte e sete mil, oitocentos e oitenta e oito reais e oitenta e sete centavos).
Concluindo
E Santos Dumont? Lembremos que a passagem histórica de Santos Dumont pela Vila Iguassu. Quando em 1916, Santos Dumont disse à menina Elfrida Engel “É injusto que essas terras estejam em mãos de particulares” o imóvel dos Saltos Santa Maria ainda era de Jesús Val. A questão é: Santos Dumont chegou a falar com o presidente do Estado? Foi coincidência? De novo os arquivos históricos ainda não responderam a estas perguntas.
Essa “história” de Foz do Iguaçu não é sequer a ponta de um enorme iceberg. As grandes perguntas estão aí. Quem foi, o que fazia Jesús Val? Ele veio da Espanha e possivelmente de Burgos. Mas o nome Val é comum naquela parte da Espanha. Até este ponto se sabe que para responder as grandes perguntas sobre Foz do Iguaçu e sua história é necessário caminhar muito. Curitiba, Cascavel e Guarapuava; Rio de Janeiro, Posadas e Buenos Aires. E não se assustem se algum documento importante for encontrado em Londres.
É que nesta época o capital inglês era muito importante por aqui. As grandes “obrages” grandes áreas de terra para a extração de erva mate perduraram até 1930. Grupos ingleses como a Companhia de Maderas del Alto Paraná que controlava a obrage Fazenda Britânia. A Companhia Brasileira de Viação e Comércio (BRAVIACO), subsidiária da empresa São Paulo-Rio Grande e controlada pela Brazil Railway Co, todas têm a ver com nossa história. Jorge Schimmelpfeng era, por exemplo, o administrador representante da Fazenda Britânia.
Início do Parque
No que se refere ao Parque Nacional do Iguaçu, o que começou em 1939, foi o Parque “Federal” como patrimônio da União e do Povo Brasileiro. A história vem de muito antes e ainda não terminou. Não se pode deixar de admirar a visão dos deputados da legislatura de 1913. O A Lei 1.260 foi assinada pelo então presidente do Estado, Carlos Cavalcanti de Albuquerque.
Em 1916, dentro de um invejável processo de continuidade, o presidente do Estado Affonso Alves de Camargo, assina o Decreto 653 que cria o Parque Estadual do Iguassu. Mais tarde, o Estado, adquiriu mais terras e aumentou o tamanho do Parque estadual do Iguaçu. Foram estas 3.351 hectares que o Paraná ofereceu a União para que ali fosse criado um Parque Nacional.
O Paraná falou em Parque Nacional muito antes do Brasil embora o primeiro Parque Nacional brasileiro tenha sido o Parque Nacional de Itatiaia. A União aumentou a quantidade de terra para atuais 185 mil hectares. Colocou o Parque na lista do Patrimônio Natural. E muita gente sofreu, teve direitos sacrificados para que tivéssemos um Parque. Jesús Val foi o primeiro. Mas a lista é grande.
Segundo o registro, Jesús Val, 47 anos, casado, era residente na Colônia desde 1897. Ele recebeu da Colônia Militar um lote de 1.008 hectares para fins agrícolas
Jesús Val não gostou. Entrou na Justiça para reaver a sua terra. Nos documentos dessa época, Jesús Val já aparece como viúvo e residente em Puerto Colón, Paraguai
Quando em 1916, Santos Dumont disse à menina Elfrida Engel “É injusto que essas terras estejam em mãos de particulares” o imóvel dos Saltos Santa Maria ainda era de Jesús Val
Em 1916, dentro de um invejável processo de continuidade, o presidente do Estado Affonso Alves de Camargo, assina o Decreto 653 que cria o Parque Estadual do Iguassu
Jackson Lima é jornalista, escritor e pesquisador. É acadêmico de comunicação da UDC. Está dedicado atualmente na reconstituição da vida durante a Colônia Militar do Iguassu. E paralelamente aos primeiros habitantes da região os guarani, sua religião e misticismo. Agradecimentos ao Arquivo Público do Paraná, Biblioteca Pública do Paraná, Biblioteca Nacional e DINF – Arquivo do Exército. Museu Bertoni e empresários locais que apóiam de várias maneiras aos esforços.
Fonte: Revista Cabeza, edição nº 12, julho de 2003
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