Cassiana Lícia de Lacerda
Essa trouvaille deslocou o eixo das pesquisas historiográficas da iconografia sobre o Paraná do século XIX para o século XVIII. As notícias sobre a iconografia no Paraná são, de certa forma, recentes e tributárias das pesquisas do estudioso e colecionador Newton Carneiro, que, em 1950, publicou um pequeno trabalho, Iconografia Paranaense. Em 1973, o mesmo estudioso publicará, juntamente com J. F. de Almeida Prado, Jean Baptiste Debret. 40 paisagens do artista, obra que dará ao pintor e aquarelista francês o privilégio de ter sido o primeiro a retratar Curitiba, Paranaguá e as principais povoações localizadas no Caminho das Tropas.
Com a edição de Pintores da Paisagem Paranaense, em 1982, pela Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, mais uma vez Debret é citado como o pioneiro de nossa iconografia. Exatamente nesse contexto tivemos notícia de que aparecera no mercado da arte uma série de paisagens relacionadas com o Paraná, mais especificamente com a conquista dos Campos de Guarapuava, quando um conjunto de estampas atribuído a “Miranda”, destacado no catálogo da Sotheby’s de Nova York, foi adquirido por Beatriz e Mario Pimenta Camargo.
Essas 39 estampas (originalmente eram 40) têm uma complexa história, mas basicamente a intenção daquele que as encomendou, Afonso Botelho de Sampayo e Souza, a de ilustrar sua Notícia dos descobrimentos dos Sertões do Tybagi, de 1771-1773, a ser encaminhada ao Morgado de Mateus. Isso porque tanto Afonso Botelho quanto o Morgado de Mateus precisavam reabilitar suas imagens e legitimar seus atos, pois estavam sendo acusados de má conduta e, especialmente, de violarem as ordens reais no tratamento dos índios.
Tais motivações explicam porque todas as análises conduzem para a constatação de que os desenhos de José Joaquim de Miranda foram concebidos a partir do texto e que seu autor não conheceu a paisagem ou os índios do Paraná que retratou.
Também as paisagens de Debret vêm sendo objeto de estudos que questionam a presença física do autor da Viagem Pitoresca no Sul do Brasil, fato que não reduz a importância de seus trabalhos, mas abre espaço para o que vem sendo considerado a “debretização” de paisagens a partir de narrações feitas por outros viajantes, alunos e exploradores para o grande artista francês.
Não foi o que ocorreu com a iconografia das Cataratas do Iguaçu, de autoria do prestigiado arquiteto português José Fernandes Pinto Alpoim.
Esse arquiteto português chegou às Cataratas do Iguaçu como integrante de uma comissão portuguesa, que, juntamente com técnicos espanhóis, fora encarregada dos trabalhos demarcatórios dos limites da região do Rio Iguaçu – conforme previra o Tratado de Madrid (1750) – realizou explorações na região das quais resultaram inúmeros levantamentos, plantas, diários, relatórios e mapas. José Fernandes Pinto Alpoim formou-se na Universidade de Coimbra, era engenheiro militar e foi notável professor da Academia Militar. Foi construtor e autor de projetos de vários edifícios públicos e obras de embelezamento no Rio de Janeiro – cidade que chegou a governar –, destacando-se o projeto do Paço e seu entorno, e, entre outras obras, o Arco do Teles, o Convento de Santa Tereza, o Convento de Nossa Senhora da Ajuda, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Boa Morte, os Arcos da Carioca, além de inúmeras obras em Minas Gerais, do Palácio do Governador ao risco da Casa de Câmara e Cadeia, de Ouro Preto. Além disso, é considerado o autor do primeiro plano de urbanização da América do Sul, quando Mariana preparava-se para ser sede do Bispado.
Tais credenciais repercutem na Vista do Salto do Rio Yguaçû (1759), trabalho que mede apenas 0,36×0,51cm, mas que cresce aos olhos do observador graças à riqueza cromática e dos detalhes.
No inserto, Alpoim vale-se do desenho aquarelado para traduzir o jogo cromático das águas, matas e rochedos.
O desenho traz no alto – de modo a se tornar deliberadamente aditivo – um elemento de natureza mais técnica, o Plano do Salto do Rio Yguaçû.
Assim, para valorizar a vista, o plano aparece como uma espécie de pergaminho anexo, concorrendo para tanto a imitação de bordas enroladas simulando um “desenho” sobreposto.
Desse modo, a Vista do Salto do Rio Yguaçû ganha em espaço e importância. Mesmo em condição aditiva, o Plano do Salto do Rio Yguaçû também é contaminado pela exuberância da mata pluvial subtropical verdejante que margeia o Rio Iguaçu.
No sistema figurativo da época, o plano e a vista das Cataratas do Iguaçu participam do tema da representação de lugares, cabendo ressaltar que, desde o século XVI, a cartografia situa-se como uma das formas de orientação do espaço que recorre a outras áreas do saber além do científico, especialmente a arte do desenho e do ornamento artístico.
Neste caso, comparando o Plano do Salto do Rio Yguaçû com trabalhos técnicos de especialistas contemporâneos, como os de Reinhard Maack, o registro de Alpoim ganha destaque, pois ainda que o autor da iconografia tenha se apoiado em elementos técnicos rudimentares próprios da época, consegue determinar com acuidade o movimento em curva do Rio Iguaçu,se encimando para as cataratas, bem como o estreitamento e a queda no cânion, onde ocorre a precipitação das águas.
Esta “parte” do inserto traz um cartucho contendo a escala de medição em petipé – utilizada na navegação para apontar a força da água. O cartucho ou cartela é adornado graficamente com volutas em forma de ondas, que se encontram no centro em uma alegoria de monstro com a boca aberta, talvez um remanescente da visão clássica do deus do vento, Eolo, reforçando com seu sopro a força e o perigo das águas, com a direção indicada por fechas em forma de peixes.
Por sua vez, a Vista do Salto do Rio Yguaçû dá lugar para o autor expressar seu entusiasmo e maravilhamento diante do espetáculo natural e registrá-lo com dote artístico sem contaminar a paisagem apreendida com intenções ligadas ao domínio português sobre o território. Ao contrário, sua vista tem o interesse em retratar o espetáculo das águas e a beleza da paisagem.
Ao comprometer a perspectiva, oferece uma visão “plana” que resgata o número incontável de saltos e a presença, hoje quase que apenas mítica, das palmeiras que coroam o alto do cânion. Sua raridade decorre de o alerta do geólogo e ecologista Reinhard Maack não haver sido levado em conta. Isso porque, desde a década de 1930, Maack já alertava que a palmácea Mauritia vinifera era a mais rara vegetação do Paraná, e que, por isso, “deveria estar sob proteção governamental especial”.
É interessante observar que as dobras do inserto praticamente coincidem com as diferentes “partes” dos derrames das cataratas. Inicialmente, a plataforma resultante da ampla curva e de uma corredeira do Rio Iguaçu, que se estreitando, de 1.200m para 65 a 100m, despenca-se na linha tectônica: é o espetáculo da Garganta do Diabo e dos grandes saltos com seu permanente arco-íris – ponto inicial ou culminante das cataratas.
Seguem-se as camadas das inúmeras quedas isoladas e do istmo que avança dando a impressão de ilha (Cresta de los Saltos e Salto San Martin), e, finalmente, a grande curva onde fica a Boa Vista, seguida de saltos mais espaçados (do Salto Adão e Eva até o Salto de Amores).
Analisada em sua totalidade, a ausência de profundidade da Vista do Salto do Rio Yguaçû permite resgatar em sua totalidade a sequência de quedas, rochas, corredeiras e matas, o que é reforçado pelo ponto de vista a partir da margem brasileira.
Em a Vista do Salto do Rio Yguaçû, o espetáculo de grandiosidade quase que barroca de nossa natureza fica estreitamente ligado à sensibilidade interessada em entronizar a especificidade e a originalidade de uma paisagem de beleza e esplendor impensados, diante da qual Alpoim dá-se ao luxo de registrar como se fora instante de maravilhamento.
* Cassiana Lícia de Lacerda, escritora, professora, consultora e curadora de exposições.
Texto publicado originalmente no site da Travessa dos Editores.
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