Emerson Dias – Folha de Londrina
4 de novembro de 2001
A criação de uma rede fluvial de transporte internacional na bacia do Rio Paraná, que abrangeria os estados de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul e cidades paraguaias e argentinas, sempre foi o sonho de muitos ''marinheiros de água doce'', apaixonados pela vida sobre um convés. Mas as barreiras naturais (antes, Sete Quedas) e criadas pelo homem (agora, Usina de Itaipu) transformaram esta idéia em mero devaneio desde o início da colonização do Oeste do Estado, lá pelos idos de 1890.
Mas ao contrário do nosso País, Argentina e Paraguai provaram que as hidrovias são viáveis, tanto que as ''chatas'' cargueiros flutuantes com capacidade para 250 toneladas trafegam tranquilamente pelos rios Paraguai, Paraná (abaixo da Itaipu) e Rio da Prata (fronteira Aragentina/Uruguai). Diferente da maior hidrelétrica do mundo, a Usina Binacional de Yaciretá (fronteira Argentina/Paraguai, também construída no Rio Paraná) oferece condições de transbordo das barcaças graças a uma eclusa, um ''elevador de água'' que facilita a viagem dos graneleiros fluviais que saem da tríplice fronteira e seguem até os portos de Montevidéu e Buenos Aires.
O Brasil possui boa estrutura na Hidrovia Paraná-Tietê, onde o navegante pode embarcar em Guaíra, seguir pelo ''Paranazão'', passando pelas eclusas das usinas de Jupiá (Três Lagoas-MS) e Ilha Solteira (Ilha Solteira-SP), percorrer o canal artificial de Pereira Barreto (SP) e chegar ao Porto de Anhumas (região metropolitana de São Paulo). O curioso é que os maiores usuários deste trajeto são os importadores paraguaios. Somente os portos de Salto del Guairá (próximo à Guaíra) e de Hernandárias (atracadouro chamado ''La Paz'' e distante 25 quilômetros de Foz), movimentam cerca de 120 mil toneladas de grãos todos os anos (o transporte fluvial abaixo da Itaipu é bem maior).
A questão é complexa e envolve empresários, autoridades internacionais e, é claro, estivadores e navegantes. Nesta reportagem, a Folha resgata a história da zona portuária tida como uma das movimentadas da América Latina. Fatos que podem servir para motivar um sistema que reduza os custos de transporte em até 40%, para atiçar a curiosidade do jovens marinheiros ou simplesmente para relembrar a ''época de ouro'' dos moradores de Puerto Presidente Franco (Paraguai) Puerto Iguazú (Argentina) e Vila Iguaçu (antiga Foz do Iguaçu). Todos a bordo!
Navegação serviu região por um século
Oficialmente, Foz do Iguaçu e a cidade paraguaia de Puerto Franco (a 10 quilômetros de Foz e criada em 1º de agosto de 1929) foram fundadas praticamente da mesma época. Mas a história da navegação fluvial antecede o ano de 1880, período em que a extração da madeira e da erva mate agitava a região conhecida como ''Tríplice Fronteira''.
Relatos de pai para filho descrevem enormes jangadas, construídas de madeiras nobres como cedro, marfim e ipê. Os troncos eram transportados em grandes carros-de-boi e levados até a margem. As toras eram amarradas, lançadas ao Rio Paraná e rebocadas em direção a Buenos Aires ou Montevidéu.
Na virada do século 20, Puerto Franco era considerado um dos atracadouros mais movimentados da América Latina. Enormes barcos a vapor transitavam pela região, passando também por Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú na Argentina. Até 1930, embarcações traziam turistas e trabalhadores da capital argentina e de cidades do sul do Paraguai. Os visitantes queriam conhecer o agitado porto e as Cataratas, e ainda a casa do cientista suíço Moisés Santiago Bertoni. Ele e Vicente Matiauda, foram os principais fundadores da cidade. A partir de 1939, o primeiro coletivo fluvial começava a circular entre os três países, utilizando os rios Paraná e Iguaçu. A embarcação, movida também a vapor, continua atracada no porto. Pedro Garcete, 57 anos, cuida hoje do que ele chama de ''pedaço da história''.
Com a fundação de Puerto Stroessner (atual Ciudad del Este) em fevereiro de 1957, o movimento aumentou ainda mais. Operários se preparavam para iniciar uma das maiores obras arquitetônicas já projetadas para a região: a Ponte da Amizade. Enquanto limpavam o terreno, ''barcos obreiros'' traziam material. A ligação entre as duas cidades paraguaias eram feitas em kombis. A viagem de apenas sete quilômetros chegava a durar mais de duas horas em dias de chuva. ''Os passageiros, que seguiam como sardinhas enlatadas, desciam para empurrar os veículos para poder chegar ao destino final. Era sacrificado, mas hoje lembramos de tudo com um certo carinho'', lembra Francisco Amarilla, 47 anos, historiador e ambientalista paraguaio.
Barcos da Argentina e Uruguai vinham com encomendas das capitais e também da Europa. A chegada dos navios era motivo de festa para a população. Todos se reuniam no porto para receber os turistas, buscar produtos, vender lanches e artesanato. A pequena sede mandida pelos correios em Franco, continua em pé até hoje. Naquela época, filas eram formadas para retirar as cargas e cartas. Hotéis ''cinco estrelas'' como o Santa Luzia e o Três Monedas, construídos em madeira, ficavam lotados.
Em 1972, um grande acontecimento: a inauguração do sistema de energia elétrica. Foi no dia primeiro de agosto daquele ano. A população local e de cidades da região se reuniu em uma cerimônia que marcou a história da cidade e trouxe grande avanço para o porto, já que o trabalho dos estivadores passou a se estender noite adentro. Ainda na década de 70, houve a chamada ''Época do Ouro Branco'', uma alusão ao tráfico de farinha de trigo argentina. ''Pessoas ficaram ricas fazendo o contrabando para o Paraguai e também para o Brasil em pequenos barcos, garantindo o sustento dos moradores ribeirinhos. Hoje, o pó branco é outro, rende mais dinheiro e é altamente perigoso'', brincou Amarilla, referindo-se ao narcotráfico.
Com o nascimento do comércio em Ciudad del Este, o movimento de Puerto Franco foi definhando. Em 1983, o porto foi fechado, direcionando o trânsito fronteiriço para a Ponte da Amizade. Mas para os antigos estivadores, o sonho ainda não morreu. Edufigis Zarate, trabalhou durante 30 anos no conhecido porto. Hoje, aposentado aos 57 anos, ele tem esperança de um dia o local voltar a ser movimentado. ''Ainda mantemos o sindicato com 30 estivadores. Todos esperam pela reabertura dos portos (anunciada pelos governos paraguaio e brasileiro) e também voltar a ganhar 70 mil guaranis (cerca de R$ 40) por dia'', disse Zarate.
Enquanto o movimento não volta, a história fica marcada pelas ''carcaças'' de antigos rebocadores, depositados no fundo do ''Paranazão''. Em época de seca, lembranças enferrujadas surgem do rio, assim como afloram na memória dos moradores da região. A ''arenera'' (transportadora de material de construção utilizado na ponte) é um destes exemplos. Escondido sob as águas há 26 anos, o último dos grandes cargueiros se expõe aos curiosos pescadores. Um marco histórico que representa as tragédias e conquistas dos habitantes da região.
Explosão de vapor matou 120
Oficialmente, a história dos rios que formam a tríplice fronteira é marcada por três grandes tragédias. A maior delas aconteceu em 1924, quando um navio a vapor explodiu no Rio Iguaçu, matando pelo menos 120 passageiros.
A última foi registrada em 5 de setembro de 1999, data em que sete pessoas morreram. Mesmo sendo inverno, a seca castigava a região oeste do Estado, reduzindo a vazão das águas e estreitando o Rio Iguaçu. Por volta das 10h30, o maior barco do Macuco Safari (empresa que promove passeios em direção às Cataratas do Iguaçu) saía do porto e subia a correnteza levando 23 turistas para verem de perto as famosas quedas do rio, enquanto outra embarcação com dez pessoas, incluindo o piloto Cândido Siqueira, voltava do passeio em direção ao atracadouro.
O choque aconteceu em um trecho estreito. Segundo as investigações da polícia, Siqueira não teria mantido o barco no seu lado direito do rio, desrespeitando as normas marítimas internacionais. O piloto e outros seis turistas morreram.
Outro acidente grave aconteceu em um dos recantos mais conhecidos do Paraná entre os anos 70 e 80: o Parque de Sete Quedas em Guaíra (hoje submersas pelo Lago de Itaipu). O acidente não envolveu nenhuma embarcação, mas provocou a morte de 14 pessoas. Em 17 de janeiro de 1982, um grupo de turistas circulava em uma ponte pêncil construída sobre o salto de número 14. Os cabos que sustentavam a ponte romperam, derrubando os visitantes na garganta formada pelas cachoeiras.
A maior tragédia no entanto não possui registros fotográficos e seus detalhes foram passados de pai para filho. ''Meu pai, José Werner, foi um dos poucos sobreviventes da explosão do vapor Santa Cruz, em 1924. Reencontrar ele foi uma das maiores felicidades da minha mãe (Olivia Matte Werner)'', comentou Darci Werner, 86 anos, integrante de uma das famílias mais tradicionais de Foz, lembrando que uma tia também sobreviveu ao acidente. A Folha buscou registros históricos sobre o caso e encontrou uma entrevista do pioneiro, concedida ao Jornal Nosso Tempo em 1981. Para mostrar o medo e o desespero dos envolvidos no acidente, nada melhor que reproduzir a história narrada pela própria vítima: José Werner:
''Vínhamos de Curitiba pelo Rio Iguaçu. Éramos cerca de 150 pessoas, a maioria era de turistas que iam para a Argentina. De madrugada, quando a todos dormiam, ocorreu a explosão. Era proibido, mas o barco transportava seis tambores de gasolina. No momento da primeira explosão, estava perto da minha irmã, que se agarrou em mim. Logo eu não vi mais nada porque ocorreram outras explosões. Quando me dei conta, estávamos no meio d'água e do fogo. Sofri queimaduras graves, principalmente no rosto. Foi um acidente terrível. Morreram mais de 120 pessoas''
Colônia militar deu origem a Foz do Iguaçu
As primeiras casas construídas em Foz do Iguaçu datam de 1880, época em que argentinos e paraguaios eram maioria de uma população que circulava livremente pela fronteira e sobrevivia da extração de madeira e erva-mate. Para resgatar a soberania da região, o Ministério da Guerra decidiu criar uma colônia militar em 1888.
No ano seguinte, uma expedição formada por 34 soldados, 12 operários civis e quatro tropeiros, aportou na região e realizou o primeiro censo: 324 pessoas foram cadastradas, 85% estrangeiros. Com a chegada de novas caravanas pelo Rio Paraná e pelo Caminho de Guarapuava, começava a colonização do extremo oeste do Estado. Já nos primeiros anos do século 20, o vilarejo já contava com duas mil pessoas, quatro mercearias, uma hospedaria, engenhos de açúcar e cachaça, pequenas roças e um quartel improvisado. A fundação do município de Vila Iguaçu seria oficializada somente em 1914 (o nome mudaria definitivamente em 1918).
Como as estradas (na verdade, picadas) dificultavam a viagem dos colonizadores por terra, as embarcações se tornaram a melhor opção para quem desejava conhecer a ''Terra das Cataratas''. A burguesia curitibana realizava ''safáris'', utilizavando barcos a vapor para viajar pelo Rio Iguaçu. Turistas, empresários, profissionais liberais e até simples operários, utilizavam o itinerário mais conhecido da década de 20. As viagens de alta classe também registraram tragédias, como a explosão de um vapor em 1924, onde morreram cerca de 120 pessoas.
A cidade também foi palco de acontecimentos históricos, como a invasão da Coluna Prestes em 1924. O grupo liderado por Luiz Carlos Prestes permaneceu quase um ano na fronteira. A presença do Exército inibiu por muito tempo o desenvolvimento de Foz, enquanto do outro lado do Rio Paraná, o comércio se expandia com velocidade. Até o surgimento da Ponte da Amizade em março de 1965, Ciudad del Este (distante dez quilômetros de Puerto Franco) era chamada de Puerto Stroesnner e não passava de um vilarejo com pouco mais de mil habitantes.
A Capitania dos Portos do Rio Paraná foi fundada em 1933. Os marujos acompanhavam o trabalho dos soldados e vigiavam as barrancas, na tentativa de impedir o contrabando de produtos roubados da mata nativa. Com o passar dos anos, os pequenos pescadores deixaram de ''traficar'' madeiras nobres e passaram a ganhar dinheiro com a venda de mercadoria ilegal (farinha de trigo argentina e cereais paraguaios eram bons exemplos na época).
Em 1950, um desentendimento diplomático chamou a atenção do governo federal. Um marujo brasileiro, conhecido como ''Alemão'', foi preso por guardas paraguaios. A Capitania convocou reforços e o Ministério da Marinha enviou fuzileiros navais, que vieram por terra e também pelo ar (um grupo de 20 homens saltou de pára-quedas, chamando atenção da comunidade). Depois de longa negociação, Alemão e seu pequeno barco foram liberados.
O auge da Capitania dos Portos de Foz foi registrada na década de 60, período em que a base contava com 110 homens (70 fuzileiros) prontos para garantir a segurança da fronteira. Nesta mesma época, os portos da tríplice fronteira registravam cerca de 130 grandes embarcações atracando todos os meses na região, principalmente em Puerto Franco. Com a inauguração da Ponte da Amizade, o transporte fluvial definhou, juntamente com o comércio de matérias-primas da região. A malha rodoviária se expandiu na década de 70, e com ela a instalação de empresas importadoras em Ciudad del Este. O contrabando de mercadorias ''made in Paraguay'' reuniu as pequenas cidades fronteiriças em uma grande metrópole, sepultando definitivamente os portos dos três países no início dos anos 80.
* Emerson Dias é jornalista e professorem Londrina (PR) e trabalhou na sucursal da Folha de Londrina em Foz do Iguaçu.
Reportagem publicada na Folha de Londrina em 04 de novembro em 2001.
O especial foi reproduzido pela Revista Cabeza em julho de 2002. Baixe o PDF.
A imagens desta postagem do H2FOZ foram extraídas das páginas diagramadas da Cabeza.
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