Com fronteiras fechadas, contrabando de produtos argentinos dispara

Vinhos e espumantes tornaram-se mercadorias altamente rentáveis para argentinos e brasileiros que praticam contrabando e descaminho.

Fechadas há mais de um ano, as fronteiras argentinas impedem o costumeiro fluxo turístico de brasileiros ao país vizinho em busca de vinho, espumante, camarão, azeite, empanada e das suculentas carnes. Mas para o contrabando, a pandemia não foi problema.

Estatísticas da Receita Federal do Brasil (RF) indicam aumento nas apreensões de vinho e espumante, vindo da Argentina, em várias cidades do Paraná e Santa Catarina em 2020, com destaque para as regiões de Cascavel, Curitiba e Dionísio Cerqueira, situada na divisa com a cidade de Bernardo de Irigoyen, Argentina. Nos dois estados, o valor das apreensões saltou de R$ 2.465.373,09 no ano de 2019 para R$ 13.374.178,18 em 2020, ou seja, uma diferença de 442,48%.

Em Dionísio Cerqueira, mais de cem mil garrafas de bebidas, a maioria vinho, foram apreendidas ano passado, um volume que representa 428% de aumento em relação ao ano anterior. Neste ano, já no primeiro trimestre, as apreensões superam 30 mil garrafas apreendidas.

A impossibilidade de os turistas brasileiros cruzarem as fronteiras para adquirir os produtos e a diferença cambial entre real e peso (moeda argentina) são os combustíveis para a disparada do contrabando, principalmente de vinhos de alto valor.

As mercadorias são trazidas ao Brasil por estradas vicinais, rotas clandestinas ou são escondidas em caminhões – Foto Receita Federal

A maior parte dos produtos contrabandeados é escoada pelas fronteiras dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Por isso, os municípios de Dionísio Cerqueira, Santo Antônio do Sudoeste (PR) e São Borja (RS) tornaram-se pontos visados e nevrálgicos para a entrada de produtos argentinos nesta fase de pandemia. As mercadorias são trazidas ao Brasil por estradas vicinais, rotas clandestinas ou são escondidas em caminhões ou carros de passeio.

Policiais e fiscais já encontraram vinhos em meio à carga de grãos, em veículos pequenos e em depósitos de fachada, a exemplo de uma fábrica de móveis situada no município de Francisco Beltrão, no Sudoeste do Paraná. Entre as cargas havia marcas como DV Catena e Angelica Zapata. Algumas garrafas estavam sendo vendidas por cerca de R$ 2 mil.

Contrabandistas também fazem a travessia a pé

Nas fronteiras dos municípios de Dionísio Cerqueira, Barracão e Santo Antônio do Sudoeste com a Argentina, separadas por ruas e avenidas, alguns contrabandistas fazem a travessia a pé, principalmente durante a noite. Eles abastecem depósitos clandestinos que distribuem as mercadorias para todo o país, diz o delegado da Receita Federal em Dionísio Cerqueira, Mark Tollemache.

Ele aponta que o descaminho de bebidas passou a ser uma atividade altamente lucrativa e que há grandes quadrilhas dedicando-se a essa prática criminosa. A exemplo do que ocorre no contrabando entre Paraguai e Brasil, os grupos que atuam na Argentina roubam, furtam e adulteram veículos para introduzir as mercadorias deste lado da fronteira. As quadrilhas também praticam corrupção de menores e falsidade ideológica, entre outras fraudes, explica.

De acordo com Tollemache, há contrabandistas com permanência civil na Argentina, sendo proprietários de comércios. “A maior parte são brasileiros que têm negócios na Argentina”, revela. Alguns deles possuem empresas de fachada para comercializar as bebidas.

Em agosto do ano passado, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) interceptou uma carga de vinho em Foz do Iguaçu que seria entregue em um estabelecimento da Vila Portes. O produto, segundo o motorista, veio de Santo Antônio do Sudoeste. Após cruzar a fronteira, algumas mercadorias são distribuídas em capitais como Curitiba e São Paulo.

Os vinhos apreendidos são transformados em álcool e álcool gel em universidades brasileiras. Foto: Receita Federal

Entre os dias 28 de fevereiro e 4 de março, forças de segurança presentes na aduana argentina realizaram a Operação Dionísio, considerada a maior ação da história no combate à entrada irregular de vinho no Brasil, resultando na apreensão de 27 mil garrafas da bebida, avaliadas em R$ 5 milhões.

No dia 24 de fevereiro, 20 mil garrafas de bebidas alcoólicas, avaliadas em R$ 2,5 milhões, foram transferidas da Receita Federal em Dionísio Cerqueira para Foz do Iguaçu, para liberar espaço no depósito da cidade catarinense, tamanho o volume de apreensões. A destruição foi bancada pela Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe).

Os vinhos apreendidos são transformados em álcool e álcool gel em universidades brasileiras. O papelão usado nas embalagens e os vasilhames são destruídos e destinados à Cooperativa de Catadores de Foz do Iguaçu.
Impacto no mercado

A Associação Brasileira de Bebidas afirma que a entrada massiva de vinhos e espumantes provenientes da Argentina causa impacto no setor de bebidas do Brasil, independentemente da pandemia.

Em 2020, conforme a Abrabe, foram apreendidas quase cem mil garrafas contrabandeadas, o que equivale a mais de 74 milhões de litros – considerando garrafas de 750ml. A perda para a indústria chegou a mais de R$ 3,7 milhões.

Entre julho e dezembro de 2020 foi registrado um crescimento no número de bebidas alcoólicas contrabandeadas e falsificadas, de acordo com a associação. Foram mais de 72 mil garrafas. Pelo menos 71% do volume apreendido no ano passado era relativo ao contrabando. Em 2019, correspondia a 69%. Em relação aos itens falsificados, em 2020, correspondiam a 29%. Já em 2019, 31% dos itens apreendidos eram derivados de falsificações.

Os estados que lideram a entrada de contrabando são Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Já São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro aparecem como os estados com maior incidência de ilícitos, segundo a Abrabe.
Cota para bebidas é liberada apenas com fronteira aberta

A compra de bebidas na Argentina é permitida mediante a cota de 12 litros por pessoa. Como as garrafas de vinho em geral têm 750ml, seria possível adquirir até 16 garrafas. No entanto, a cota é válida somente com as fronteiras abertas e direcionada a turistas, ou seja, itens para consumo próprio ou para presente. A cota não prevê a aquisição de bebidas para qualquer tipo de revenda ou destinação comercial.

A prática de contrabando ocorre quando mercadorias proibidas ingressam no Brasil, a exemplo de cigarros, armas, munições e medicamentos. O crime de descaminho aplica-se a todas as mercadorias de importação permitida, porém introduzidas de forma irregular, ou seja, sem passar por pontos de fronteira alfandegados, entrando no Brasil via estradas vicinais ou ocultas em veículos para burlar a fiscalização evitando o pagamento de tributos.

Pandemia escancara novas rotas

O presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF), Luciano Barros, informa que, além de bebidas, novas rotas de contrabando via Argentina, passando pelo Rio Grande do Sul, estão sendo usadas para o transporte de cigarros e agroquímicos.

A polícia argentina tem apreendido cigarro próximo às margens do Rio Paraná, na província de Misiones. Em uma das rotas, as quadrilhas atravessam o Rio Paraná, saindo do Paraguai para a Argentina, e acessam o Rio Grande do Sul, via Misiones. “A pandemia evidenciou os crimes que já existiam pelas fronteiras”, confirma.
Além de mercadorias, há constantes registros da entrada de drogas, armas e munições por meio dessas rotas.

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