Harry Schinke, cidadão de Foz do Iguaçu, pelas memórias de sua neta
Elizabeth Carinzio, guardadora das reminiscências da família, que são entrelaçadas com a própria trajetória da cidade, sonha com a preservação dessa história.
A chamada inaugural no número 72-12-38 fez Elizabeth Carinzio, adolescente, quase cair dura de susto. Foi a primeira vez que ouviu telefone tocar, um dos poucos na época e que acabara de ser instalado. Era a Foz do Iguaçu da década de 1970, prestes de adentrar um período de grandes modificações pela construção da Itaipu Binacional, entre as quais o aumento exponencial de 300% da sua população, que beirava 30 mil moradores.
Nascida em dezembro de 1959, a filha de Luiz e Laís Lizette Carinzio, a Laly, e neta de Harry e Marieta Schinke, é a guardadora das memórias da família, que são entrelaçadas com a própria trajetória de Foz do Iguaçu. Ela espera ver as casas dos pais e avós preservadas, transformadas em museu, junto com móveis e objetos, sem, no entanto, esconder o ceticismo quanto à concretização desse sonho, pela letargia do poder público em zelar do patrimônio histórico.
O avô Harry Schinke chegou a Foz do Iguaçu nos anos 1920 para atender com profilaxia a população e foi um dos primeiros fotógrafos da cidade, legando registros que são testemunhos sobre fatos e personagens. Trabalhou para a Marinha, na maquinaria, e no serviço de táxi, do velho aeroporto às Cataratas do Iguaçu, assim como esporadicamente trazia mercadorias da Argentina. Passou a morar na casa histórica da Rua Tiradentes em 1925, rememora Elizabeth Carinzio, edificação entre as mais antigas da cidade ainda em pé.
Seus pais construíram ao lado o casarão de nuances coloniais, inicialmente, em 1938, alugado à Panair, ramificação da companhia Pan American, em que trabalhou o então jovem João Samek, também pioneiro, lembra. Em 1940, a família abriu no espaço a empresa de ferragens que vendia para brasileiros e paraguaios, com Elizabeth à frente, nos últimos tempos. “Tenho até hoje o alvará inicial”, registra.
Harry e Marieta
Vindo da Alemanha, primeiro para Joinville (SC), onde moravam parentes, quando Harry Schinke se mudou para Foz do Iguaçu a cidade tinha cerca de uma década de criação oficial, instituída que foi pela burocracia em 1914. Ele e Marieta tiveram os filhos: Laís Lizette – que nasceu em 1923, em uma casa ao lado da igreja matriz –, Harrison, Teresina, Haydy e Daniel, todos falecidos.
“Eu era o xodó dele”, exalta Elizabeth, sobre a relação com o avô. Schinke fez da fotografia hobby, utilizando máquinas que vinham possivelmente de São Paulo, trazidas pelo irmão – e uma delas pode ter sido recebida como presente –, arrisca dizer a neta. Um dos modelos é guardado por ela até hoje, uma Rolleicord, tamanho médio e com lente dupla, equipamento que era fabricado entre as décadas de 1930 e 1970.
Mas, afinal, o que pode ter feito Harry Schinke tomar gosto por fotografar? “Ele veio da Alemanha jovem. Talvez, ao ver toda essa beleza, uma coisa meio selvagem, pode ter despertado isso nele”, narra a neta, que conviveu com o pioneiro até os 15 anos. Metódico, informado, leitor, afável, amigo das famílias Engel e Basso, entre outras, compadre do cientista suíço radicado na fronteira Moisés Bertoni, gostava de canastra, xadrez e alcaçuz, planta antiga e doce que compartilhava nacos com os pequenos da casa.
A biblioteca de Harry Schinke era formada de clássicos e livros médicos. “Gostava muito de ler. Era estudioso, estava sempre descobrindo alguma coisa”, puxa Elizabeth suas reminiscências. “À tarde, ele sentava na varanda dos fundos da casa. Eu ficava sobre os seus pés, por ali geralmente tinha uma revistinha para eu ler. E tinha um gato, da vó Marieta, que eu adorava puxar o rabo”, conta.
À Marieta Schinke cabia “cuidar da filharada”, lembra Elizabeth, e muito trabalho com o cultivo da horta, mandioca, milho, frutas e jardim – que não tinha plantas medicinais. De ascendência “polaca”, gostava de cozinhar para muitas pessoas. “No Natal, matava e preparava duas galinhas, com sobremesa de gelatina e doce de leite. Nunca mais houve natais como aqueles. Tenho muitas saudades”, diz.
Quando o estado-maior do que veio a ser a Coluna Prestes se instalou em Foz do Iguaçu, a soldadesca batia à porta dos Schinkes, provavelmente para beirar as panelas de Marieta, contextualiza Elizabeth Carinzio, com base em conversas mantidas com a mãe, Laly. Em tempos difíceis, a avó era um dos esteios do sustento da família. “Oh velhinha legal, gostava muito dela. Dizem que tenho o jeito dela.”
Em um dos maiores acontecimentos na Foz do Iguaçu dos primeiros tempos, Marieta Schinke dançou valsa com ninguém menos que o inventor do avião, Santos Dumont, ilustre visitante. “Ouvi ela contar lá na sala, só nós duas. Fiquei fascinada: ‘Vó, conta de novo?!’”, revive Elizabeth, com olhos marejados de orgulho, alegria e saudade. “Saí contando para todo mundo que minha vó tinha dançado com Santos Dumont”, completa.
Casa de Laly Schinke
A residência em que Elizabeth cresceu e morou até dezembro do ano passado é chamada, para fins de memorialismo, de Casa Laly Schinke. Nascida na década de 1920 do século passado, a dona Laly era uma mulher que vivia à frente de seu tempo. Foi laboratorista em fotografia, ajudante de Harry Schinke, que tinha entre outras tarefas lavar as imagens em uma fonte de água corrente, que jorrava à média distância da casa da família.
“Ela era boa de fotografia, usava as máquinas do meu avô, como essa que eu tenho guardado. Mas só fazia fotos da nossa família”, explica Elizabeth. “Mamãe sempre foi uma mulher à frente de seu tempo. Aprendeu a costurar sozinha, porque queria ter as próprias roupas. Usava calça comprida em uma época que era proibida às mulheres”, percorre e resgata em sua memória.
Sobre o pai, Luiz Carinzio, italiano de Lucca, destaca o trabalho no transporte de passageiros de Foz do Iguaçu a Guaíra, pelo Rio Paraná, com os barcos São Francisco e Santo Antônio, adquiridos no Rio Grande do Sul. E o trabalho na loja de ferramentas, máquinas e outros utensílios, que teve aumento considerável no movimento com a instalação da Itaipu Binacional, como na venda de motores e itens para piscinas.
Quando a situação financeira apertava, trabalhava como ferreiro, na forja e morsa mantidas nos fundos da casa. Na Segunda Guerra Mundial, com a perseguição do governo federal às famílias de italianos e alemães que viviam na fronteira, Luiz Carinzio precisava apresentar-se diariamente na delegacia de polícia, que na época ficava na cabeceira do espaço que abriga a Praça da Paz.
“Os estrangeiros eram monitorados em Foz do Iguaçu. Meu pai não precisou deixar a região, como outras famílias, porque, segundo as autoridades, ele não era, digamos, uma pessoa de periculosidade, não oferecia risco à paz mundial”, relembra, com ironia e indignação. “Minha mãe falava com muita mágoa que ele terminava o serviço, tomava um banho e ia à delegacia assinar um livro”, expõe Elizabeth.
“Sinto falta da minha família”
A jovem Elizabeth saía pouco de casa, só com a família, mas eram inescapáveis as sessões do Cine Star, na Avenida Brasil, onde a turma se reunia para trocar quadrinhos e pôr as histórias em dia. “A primeira vez que fui sozinha, assisti ao ‘Ben-Hur’. Foi um acontecimento, jamais esqueço. Gosto muito do filme ainda hoje”, revela, entregando que era possível entrar no cinema de “ratão”, graça à complacência de Vitório Basso, que geria a casa.
“Cresci e morei toda a minha vida nesse pedaço e daqui não quero sair”, aponta para a região dos casarões da família, o que inclui o Rio Monjolo, aos fundos. As transformações vividas pela cidade a partir da década de 1970 foram positivas para ela. Itaipu trouxe novas pessoas, movimentou a cidade, houve crescimento, enumera. “Mas também tínhamos prefeitos bons, que saíam na rua para conversar e ouvir as pessoas. Não se encastelavam”, opina.
Saudosa, ressalta sentir orgulho e falta. “O que eu tenho mais saudade é da minha família. Eu sinto muita falta. Depois que faltam as pessoas, nunca mais é igual. A casa é a mesma, mas…”, lembra com carinho e emoção. As composições do avô das quais mais gosta são uma coleção em miniatura das Cataratas do Iguaçu, só paisagem, feitas depois de observação meticulosa da cena.
Empresária de 64 anos, ela conta ser apaixonada por fotografia. Ao final da entrevista, porém, a neta de Harry Schinke, um dos primeiros a exercer a atividade na cidade, faz saber que não gosta de ser fotografada. Gentilmente, por fim, Elizabeth Carinzio aceita fazer o registro em frente à antiga casa de seus pais, que integra a paisagem de Foz do Iguaçu desde o fim da década de 1930.
Boa reportagem, Paulo, conheci a Elizabeth Carinzio, como eu trabalhei mo escritório contábil Titan, nós fazíamos a escrituração fiscal e contabilidade da loja dela. Parabéns.
Tb conheci ela e dua mãe. Muito querida. Rosicler é o meu nome.
Morava numa chácara, e ela ne vendua reparos de uma bomba Jacuzzi, na década de 1990. Elizabeth
Adoro a história! Meu TCC de arquitetura foi sobre a restauração da casa e criação de um museu de fotografia.
Sou apaixonada por história e casarões antigos, com certeza gostaria de conhecer esse caso virasse um.museu
Muito bom
Harry foi funcionário da Itaipu. Era o comandante da embarcação da Segurança. Fizemos a viagem inaugural da Usina a Guaira quando do enchimento do reservatório. A viagem demorou dois dias. No primeiro dia pernoitamos em Santa Helena. Quando chegamos em Guaira as Sete Quedas acabavam de ser cobertas pelas águas.
Seu Harry era uma pessoa iluminada, sempre sorridente com seus cabelos brancos. Quem o conheceu sabe da preciosidade que ele era