Silvana Souza analisa crise na educação e aponta saídas

A situação da educação pública no Brasil, atenta a professora Silvana Souza, doutora em Educação pela Unioeste.

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Por Zé Beto Maciel – Especial para o H2FOZ

A situação da educação pública no Brasil, atenta a professora Silvana Souza, doutora em Educação pela Unioeste. “Saímos de uma pandemia sem um plano nacional de recuperação pedagógica, que teria de ser um ciclo de vários anos”, disse nesta entrevista exclusiva ao H2FOZ.

“A influência dos grandes banqueiros e empresários na política educacional, que querem abocanhar o dinheiro da educação com vendas de produtos e serviços”, analisa ao responder as perguntas que vão das escolas cívico-militares, sobre a educador Paulo Freire, ensino médio, educação integral, evasão escolar no ensino superior e a proposta da ‘escola sem partido’.

Silvana Souza não é evasiva e nem genérica sobre temas polêmicos. “Infelizmente, mais da metade dos professores do Brasil se formam em cursos à distância e em instituições privadas, que, em geral, restringem o debate crítico sobre certos aspectos da educação, entre eles a mercantilização da educação”.

“A sociedade precisa oferecer oportunidades, sensação de melhoria de vida a partir da escolarização, para que a geração de jovens de cada momento histórico se sinta motivada a estudar”, disse sobre a crise do ensino médio.

“Paulo Freire é atacado, em geral, por pessoas que não leram uma só linha do que ele escreveu, por pessoas que sequer sabem escrever em português razoável”, reitera sobre o educador brasileiro de renome internacional, mas geralmente atacado nas redes sociais.

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Qual é o panorama da educação pública hoje no Brasil?

A situação é grave. Para numerar os principais:

Saímos de uma pandemia sem um plano nacional de recuperação pedagógica, que teria de ser um ciclo de vários anos. Sem isso, temos crianças de classe média e alta que tiveram professor particular em casa e crianças pobres que sequer tinham equipamentos para acompanhar as aulas. Então, elas retiravam atividades impressas na escola e faziam em casa, em geral, sem ajuda adequada. A pandemia aumentou a desigualdade educacional;

Com um currículo que foi desenvolvido da forma como foi possível, com aulas presenciais interrompidas e depois com aulas online, o sistema de avaliação de larga escala, mais conhecido como Ideb, seguiu seu calendário como se nada tivesse ocorrido, demonstrando um sistema que tem foco na avaliação formal e não na aprendizagem;

O bolsonarismo expandiu uma compreensão e defesa anticientífica da vida. Isso faz com que cada vez se tenha menos ciência na escola e cada vez mais pautas comportamentais e/ou de costumes. Associado e articulado a isso, teve também o incentivo à expansão da militarização das escolas e na sociedade a defesa da expansão do uso de armas, da intolerância com tudo que é diferente do padrão hetero, masculino, branco e alegadamente religioso. Outra mudança comportamental. Não é à toa que estamos tendo um aumento progressivo de ataques violentos nas escolas;

A influência dos grandes banqueiros e empresários na política educacional, que querem abocanhar o dinheiro da educação com vendas de produtos e serviços, mas, principalmente, influenciar no currículo escolar, para formar as próximas gerações com pensamentos que lhes convém, como naturalização do capitalismo como único modo de organização social aceitável, comportamento empreendedor que dissimula a crise de empregos, etc;

Isso sem falar nos problemas de financiamento, já que os municípios, que são responsáveis pelo atendimento da educação infantil e da primeira etapa do ensino fundamental, têm tido cada vez mais responsabilidades financeiras e sem o respectivo aumento de arrecadação. A União tem legislado para esse aumento sem o respectivo repasse de recursos.

Com a redução dos nascimentos no país, pode-se avançar na educação infantil e na escola integral?

Não há política pública que consiga se desenvolver bem em termos de qualidade, com permanente aumento da demanda. A estabilização da população nos obriga a tirar o foco do acesso, ou seja, do aumento de oferta de vagas, para a permanência, ou seja, a melhoria do atendimento da demanda já atendida. Então, sim, o caminho atual do Brasil é passar de um sistema no qual as crianças e adolescentes revezam o espaço quando uns saem no período da manhã para outros entrarem à tarde e noite, para um modelo mais generoso, horizontal e inclusivo. É importante enfatizar que de nada adianta apenas aumentar o tempo de permanência do jovem em uma escola precária. Isso só aumentaria o tédio e o modelo de escola como depósito de crianças. A Escola Integral tem de ter refeitório adequado, lugar para descanso depois da refeição até que se inicie as próximas atividades, banheiros com estrutura para banho e armários pois será preciso troca de roupas para diferentes atividades. Senão o que teremos será apenas Escola DE TEMPO integral.

“De nada adianta apenas aumentar o tempo de permanência do jovem em uma escola precária”, diz Silvana Souza – Foto: Marcos Labanca (arquivo)

Além de mal pagos, os professores continuam mal preparados no país frente ao universo tecnológico cada vez mais comum entre as crianças e os jovens?

Infelizmente, mais da metade dos professores do Brasil se formam em cursos à distância e em instituições privadas, que, em geral, restringem o debate crítico sobre certos aspectos da educação, entre eles a mercantilização da educação. E não se pode negar que também há dificuldades nas universidades públicas, claro. Mas, o que quero enfatizar é que não há formação continuada que resolva o problema se a formação inicial é precária. Então, sem cuidar da formação inicial adequada, vamos “enxugar gelo” eternamente nesse tema.

” Sem cuidar da formação inicial adequada (dos professores), vamos “enxugar gelo” eternamente nesse tema”

O Paulo Freire é ainda duramente atacado por políticos conservadores e a direita. Muito se fala do educador e pouco se sabe sobre seus métodos. A educação voltada à realidade dos estudantes e das comunidades onde moram, ainda está muito presente para o que ainda se chama de ‘educação libertadora’?

Paulo Freire é atacado, em geral, por pessoas que não leram uma só linha do que ele escreveu, por pessoas que sequer sabem escrever em português razoável. Ou seja, a educação libertadora não foi dada a esse contingente enorme de brasileiras e brasileiros. Paulo Freire é conhecido mundialmente. A população brasileira, em geral, deveria ter orgulho dele ser nosso. No entanto, a ignorância ainda predomina porque se trata do ódio de classe desenvolvido pela elite para que os pobres pensem como ela, e mais, defendam os interesses dela, contra os próprios interesses, sem perceber que fazem isso.

“Juridicamente, o projeto Escola Sem Partido foi fracassado. Ele foi mais reprovado do que aprovado nas diferentes casas legislativas pelo país afora”

Nos últimos quatro anos, se tentou no Paraná aprovar o malfadado projeto da ‘escola sem partido’ e foi rejeitado pelos deputados. Hoje, com perfil mais conservador nas casas legislativas, como enfrentar essa sandice, para dizer o mínimo, conservadora?

Juridicamente, o projeto Escola Sem Partido foi fracassado. Ele foi mais reprovado do que aprovado nas diferentes casas legislativas pelo país afora, pois na legislação atual, não cabe aos municípios e estados legislar sobre a matéria curricular daquela forma. Então, tal projeto foi tido como ilegal em muitos lugares. Mas, esse projeto teve êxito político à medida que, só por ser debatido, empoderou uma massa que agora entra aos gritos na escola, na condição de pai, mãe ou responsável de estudantes, dizendo que não aceita que professoras e professores falem sobre gênero, que haja aula de educação sexual, que trate de política social, e até de sistema solar, Darwinismo, etc. Então, muitos docentes, agora “se encolhem” quando vão tratar desses assuntos. Ou simplesmente nem tratam mais de forma alguma, para não terem de se desgastar com enfrentamentos desse tipo.

As escolas cívico-militares foram implantadas nos estados como a melhor alternativa do ensino-aprendizado. É claro que é uma tentativa míope e torta da militarização das escolas como um método de educação e tudo que nele está claro, mas como convencer as comunidades do contrário?

Não é bem isso, elas foram implantadas ALEGADAMENTE como melhor alternativa. Mas, quem alega? Os governos assumidamente conservadores de direita. Melhor ou pior são critérios de valores. Portanto, não significa a mesma coisa, para pessoas diferentes. O que é melhor para uma pessoa ou grupo de pessoas, pode ser considerada pior para outra. Considerando a luta de classes então, sabe-se que há interesses antagônicos entre as classes. Agora, de fato, as comunidades, por muitas vezes, gostam do modelo porque querem o melhor para seus filhos e pensam que policiais ajudariam a conter a “indisciplina”. E também as pessoas confundem e as polícias reforçam isso, o que é uma pessoa subserviente e uma pessoa educada.

O subserviente é o obediente sob qualquer circunstância. Beira o imbecil, já que foi levado a não questionar mesmo uma ordem desumana, aviltante ou ilegal. O educado é culto, crítico. Portanto, jamais será obediente cegamente. Mas, é claro que pessoas autoritárias preferem jovens quietos, obedientes. Uma lástima, pois a criatividade humana, a iniciativa, precisa de liberdade de pensamento para se desenvolver plenamente…

De fato, essa aceitação das escolas militarizadas como uma coisa boa é um senso comum que se desenvolveu na sociedade ao longo de anos, décadas, séculos e realmente é difícil de mudar, porque há dinheiro da máquina pública nisso, a força das instituições, etc. E veja que são todos leigos em educação. E infelizmente, quem é especialista no assunto é pouco ouvido. Mas, nós cientistas da educação somos também incansáveis, e estamos aí tentando contrapor isso tudo, aos olhos da pedagogia. Essa entrevista é uma destas oportunidades…

Nesses ataques às escolas, novamente coloca em pauta a segurança nas escolas. Eu considero uma tragédia mais profunda que abarca hoje os jovens e a falta de informação de qualidade. Como se pode enfrentar isso?

Praticamente todos, senão todos, mesmo, os casos de ataques de extrema violência em escolas ocorrem por iniciativa de jovens que ficaram isolados e por longo tempo, desenvolvendo um ódio motivado por uma agressão sofrida ou que, de fato, não era agressão.

Mas, isso vai crescendo na cabeça desse jovem, como uma agressão e o estímulo ao pensamento violento aumentou nos últimos anos. Esses jovens são do sexo masculino e brancos, e efetuam ataques em escolas de classe média baixa e média-média, que se ligam a grupos de internet de supremacistas brancos, fascistas, etc. Isso não quer dizer que não possa passar a ter ataques por iniciativa de jovens do sexo feminino ou pessoas que não sejam brancas. Mas, os casos até agora têm esse perfil. Estou falando de estatística real e concreta. Ah, e constata-se que nenhum foi morto pela polícia no ato de sua prisão.

Entendo que a única forma de “desarmar” essa bomba que deixada como está, tende a crescer, é com atividades pedagógicas permanentes em TODAS as escolas, atividade esta que eu chamaria de ‘Convivência democrática”. Seriam rodas de conversa com grupo de estudantes, conduzidas por docentes, psicólogos ou assistentes sociais, nos quais todos acabariam falando e assim quebraríamos o isolamento desse potencial agressor, que se sentiria aos poucos integrado e acolhido, quebrando assim, a continuidade do desenvolvimento de pensamentos equivocados. Policiamento na escola não vai resolver porque eles planejam esses ataques por anos e executam seus planos em segundos dentro da escola. Se o policial estiver em outro bloco, já é tempo suficiente para o jovem efetuar o ataque. Ele vai esperar o melhor momento para o ataque, porque planejou. Além de que o policiamento fica caro demais e as próprias polícias sabem que não tem efetivo para tudo isso.

Além disso tudo, sabemos que a polícia na escola é um mal sinal. Digo sempre que, ou todos terão segurança ou ninguém terá. Não adianta também proteger só as escolas porque os ataques iriam para outro lugar. É preciso combater o fascismo, quebrar o ciclo de isolamento do jovem e monitorar, coibir e punir com o rigor da lei, os responsáveis por grupos e plataformas onde se cultua a violência extrema. Isso sim, é papel exclusivo das polícias. Por isso, a aprovação da Lei que regula a internet é tão importante nesse momento.

“É preciso combater o fascismo, quebrar o ciclo de isolamento do jovem e monitorar, coibir e punir com o rigor da lei, os responsáveis por grupos e plataformas onde se cultua a violência extrema”

Após avançar no ensino superior, os grandes grupos estão de olho já no sucateado ensino médio. Como reverter isso? Como melhorar e tornar o ensino médio? Como incentivar os jovens da importância de estudar e se preparar para novos desafios no ensino superior?

Para isso precisa de no mínimo duas coisas.

  1. Ouvir o movimento de pesquisadores da educação, que sabe muito bem como fazer isso, a partir de um currículo humanista e científico. Mas, veja que a educação no Brasil, quase nunca é gerida por especialistas em educação básica. Na ditadura, os ministros da Educação eram em sua maioria médicos ou militares. Infelizmente, na democratização, esse quadro se alterou para uma sequência de economistas. Constata-se, portanto, que a educação só se constitui em política pública quando se converte em política econômica. As soluções educacionais têm se demonstrado, em geral, em soluções e decisões prioritariamente econômicas. Aí fica difícil de acertar, pedagogicamente falando…
  2. A sociedade precisa oferecer oportunidades, sensação de melhoria de vida a partir da escolarização, para que a geração de jovens de cada momento histórico se sinta motivada a estudar. Senão, em um olhar pragmático, que é convencional e predominante na sociedade de mercado, a escola fica quase que sem função. E não há nada pior do que uma geração sem expectativa. A geração atual de jovens se encontra assim, sobretudo os mais pobres, pois a classe média e alta tem condições de dar suporte para o desenvolvimento profissional de seus herdeiros. Ou seja, a crise de empregos, de oportunidades de trabalho, afeta diretamente o ambiente escolar, pois não se pode pensar que as pessoas se mantenham disciplinadamente dentro da escola ao longo de anos, resignadamente, sem pensar na relação dos estudos com sua vida futura.
“A crise de empregos, de oportunidades de trabalho, afeta diretamente o ambiente escolar, pois não se pode pensar que as pessoas se mantenham disciplinadamente dentro da escola ao longo de anos”

Como você avalia, a proposta do ensino integral, ensino de línguas e de abrir as escolas para a comunidade com eventos culturais, esportivos e de lazer?

É maravilhoso, perfeito e totalmente adequado, pedagogicamente falando, mas também socialmente falando, politicamente falando e humanisticamente falando.

Eu fiz as contas e Foz do Iguaçu tem 47 cursos públicos do ensino superior e perto de 10 mil estudantes (incluindo o ensino privado), mas enfrenta trancamento de matrículas e evasão escolar, como enfrentar essa situação? A ampliação dos valores do bolsa-estudantil (bolsa permanência) é a melhor alternativa?

Panorama do campus da Unioeste em Foz do Iguaçu, com destaque para o edifício da biblioteca. Foto: Divulgação/Unioeste-Foz
Panorama do campus da Unioeste em Foz do Iguaçu, com destaque para o edifício da biblioteca. Foto: Divulgação/Unioeste-Foz

Sim, a evasão em todo o país aumentou depois da pandemia e está ligada a vários fatores.
1. A falta de expectativa com os estudos, que falei anteriormente. Se o trabalho disponível para essa geração acaba sendo ser motorista de aplicativo, é lógico que pensem que não precisa de curso superior para isso.
2. Ir para a escola ou universidade, mesmo que pública, significa gastos e depois da pandemia a crise econômica aumentou em muitos lares da classe trabalhadora.
3. O sofrimento emocional decorrente da pandemia, da perda de parentes próximos, da crise financeira, etc. E…
4. Grande parte da população se acostumou a fazer atividades online, desde casa. Isso favoreceu a expansão de oferta de cursos online, e a opção por eles, que são, obviamente, mais baratos. Há cursos por 100 reais por mês. E a pessoa pode fazer as atividades a qualquer hora, em casa e sem despesas de deslocamento. O que não está nessa conta é que a atividade presencial, além de ser socialmente positiva, é insubstituível no processo de formação básica, pois as dúvidas podem ser tiradas e novas dúvidas surgem, novos debates, ideias, acolhimento, oportunidades, novos conteúdos são instigados. Enfim, as vantagens são infinitas e a formação é muito melhor. Mas, o que se divulga é que o ensino depende só do aluno. Isso é mentira: o bom ensino depende metade do aluno e metade do professor e estrutura para aprendizagem.

Dez mil estudantes em Foz, creio que seja só de cursos presenciais. Mas, é provável que haja pelo menos o dobro disso em cursos vagos, ou seja, Educação à Distância (EaD) ou online, chamados síncronos, pois são em tempo real. Esse é o problema: novamente a educação como negócio. A educação à distância é muito lucrativa.

Você se colocou a favor do passe livre aos estudantes. Qual o impacto e a importância desta medida? Pode se ampliar para o passe livre aos professores, merendeiras, secretárias e funcionários das escolas?

Fiz muitas lutas pelo passe livre em Foz do Iguaçu e me orgulho disso. É uma luta histórica. O impacto do Passe Livre é exatamente ser uma das ações de favorecimento à retomada do empenho da atual geração de jovens com relação aos estudos. O prefeito já anunciou e eu concordo que o transporte gratuito seja para toda a população e em qualquer idade, circunstância, etc.

Além de ser uma medida ambientalmente correta, porque desestimula o uso individual de carros e o estimula ao transporte coletivo e socialmente justa, diferente do que pensa a parte mais tacanha e atrasada do setor empresarial, o passe livre também favorece os negócios capitalistas, porque estimula que as pessoas saiam de suas casas e também faz sobrar mais dinheiro para o consumo.

Zé Beto Maciel é poeta e jornalista.

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