Brasil é o quinto país do mundo que mais mata mulheres, mesmo com leis que são referência contra a violência.
Ser mulher em uma sociedade patriarcal sempre foi um desafio. Ao longo do tempo, as mulheres foram conquistando espaço, mas em muitos casos na sombra dos homens. Segundo a historiadora francesa Michelle Perrot, desde que a história passou a existir como disciplina científica, a partir do século 19, a mulher dependeu das representações dos homens – que por muito tempo foram os únicos historiadores.
Tal assertiva faz parte de um dos livros da historiadora e escritora brasileira Ana Maria Colling. Especialista em História das Mulheres, ela se debruça no tema há décadas e tem várias obras publicadas. Para Ana Maria, a mulher conseguiu avançar na sociedade, porém houve muitos retrocessos. Em alguns países, onde a repressão ainda é grande, há muitas barreiras a serem vencidas.
A professora Ana Maria recebeu a equipe do H2FOZ na Kunda Livraria para falar sobre o assunto.
A violência contra a mulher é preocupante. No Brasil, como a senhora avalia a situação?
O Brasil é admirado no mundo inteiro pelas leis que tentam coibir a violência, pelas leis igualitárias como Maria da Penha e antifeminicídio, e ao mesmo tempo é o quinto país do mundo que mais mata mulheres e é o primeiro país do mundo que mais mata LGBTQI+. O patriarcado se mantém.
A senhora diz que a grande resistência às mulheres hoje é no campo político. Essa condição é uma realidade brasileira ou está presente em outros países?
A desqualificação do feminino, a menoridade da mulher foi construída por discursos e práticas – o filósofo Foucault chama de práticas discursivas e práticas não discursivas – que foram construídos historicamente no Ocidente. É só olharmos o famoso caso da Olympe de Gouges, que batalhou na Revolução Francesa e quando foi decapitada pelos colegas revolucionários é muito incrível o que vão dizer para ela: você vai morrer por dois motivos, porque quiseste ser um homem de Estado (porque foi ler e escrever) e porque traíste a natureza do teu sexo (a mulher foi feita só para parir). Então vamos ver que no mundo ocidental as mulheres sempre valeram muito pouco, foram uma moeda muito fraca.
E atualmente essa condição está presente o Oriente, nitidamente no Irã.
O caso do Irã agora é não só pelo não uso do véu, mas pelo mau uso do véu. Mas o Brasil não está muito longe não. A teocracia está presente aqui. Eu sempre me arrepio quando eu escuto falar em moral e família, porque aquele político que vier falar em moral e família normalmente deve alguma coisa. E a outra coisa é a moral e a família em um modelo patriarcal, onde eles mandam e elas obedecem. O mundo só pode ser democrático se tiver razões iguais entre os sexos; onde as mulheres tiverem as mesmas oportunidades que os homens, com os mesmos salários; onde não precisem mais serem mortas porque não querem mais esse homem; onde não precisem mais apanhar somente porque desconfiaram porque estavam de batom vermelho.
Então nós podemos ter um retrocesso em razão da onda conservadora no Brasil?
Já há um retrocesso. Acho que a Damares [Alves] é o exemplo desse retrocesso. Com todo o respeito às políticas todas, mas uma mulher que está capitaneando um Ministério da Mulher ser inimiga das mulheres não é possível. O caso mais dramático que envolve essa mulher foi o caso da menina que ficou grávida com 11/12 anos e queriam proibi-la de fazer o aborto, e quando foi consentido essa Damares divulgou o nome do hospital onde estava essa menina e ela teve que ter uma segunda, terceira violência de ver as mulheres na porta dizendo que ela não podia abortar.
Hoje nós observamos falta de tolerância em relação a uma opinião diferente, um posicionamento diferente e uma restrição da razão. O que a senhora pensa sobre isso?
Eu acho que não existe razão em um discurso tão moralista e preconceituoso. Eu não consigo entender o que te incomoda se seu vizinho é gay ou é negro. O que te incomoda o índio na aldeia?
Currículo da entrevistada
Ana Maria Colling. Historiadora, especialista em História das Mulheres, Relações de Gênero e Sexualidades, atua junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados). Pesquisadora da Unesco junto à cátedra Diversidade Cultural, Gênero e Fronteiras. Entre suas obras, destacam-se: A resistência das mulheres à ditadura militar no Brasil; Tempos diferentes, discursos iguais – a construção histórica do corpo feminino; A cidadania da mulher brasileira – uma genealogia. Organizadora do premiado Dicionário Crítico de Gênero (prefácio de Michelle Perrot).
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