Lula e a liberdade pelo trabalho – OPINIÃO

O assunto oferece elementos para se pensar o lugar do trabalho, em particular, numa sociedade como a brasileira que vem conhecendo ampla desindustrialização.

Por Paulo Henrique Martins

Entre as grandes surpresas dos resultados do primeiro turno destacamos o fato de que Lula teve grande votação no Nordeste, ao contrário de seu desempenho menos surpreendente em outras regiões do país. Muitos se perguntam sobre as razões desta performance vitoriosa de Lula numa região que, hoje, tem ampla presença de igrejas neopentecostais nos meios urbanos e rurais que, teoricamente, poderiam neutralizar o petismo.
O fato de Lula ser nordestino é uma boa resposta, considerando que o local de nascimento aparece como fator que ajuda a gerar identificação entre o candidato e eleitor. Mas, neste contexto eleitoralmente tão volátil, esta explicação é insuficiente para decifrar o enigma. Basta lembrar que o candidato bolsonarista ao governo de São Paulo, Tarcisio de Freitas, nascido no Rio de Janeiro, e sem tradição política na Paulicéia, teve uma votação surpreendente, deixando para trás o leque de alianças formado por políticos tradicionais paulistas do PSDB, do PT e outros em torno de Fernando Haddad.

Então temos que buscar outro argumento mais forte para explicar a performance de Lula no Nordeste. No meu entender, o mistério se explica pela associação que os nordestinos mais humildes, sobretudo, fazem de Lula com a representação positiva de um homem trabalhador que valoriza o trabalho. Para os nordestinos, que guardam as memórias da vida rural, a ideia do trabalho é central na imaginação do mundo. O trabalho simboliza dignidade, respeito social e esperança de uma vida melhor. O nordestino, em geral, não gosta de arruaceiros que em vez de trabalhar passam o dia gerando cizânia, bagunça e falando mal do vizinho. O arruaceiro é associado a indivíduo que não teve boa educação familiar e que nunca estudou para ser alguém de bem na vida. Que vai para a feira para zombar e comprar briga em vez de carregar as caixas de sua produção agrícola para vender na feira não merece respeito. O arruaceiro não merece confiança pois ele não consegue se sustentar com as próprias pernas. Ele precisa sempre de alguém que lhe dê algo para viver. Ou então, ele toma o que é dos outros em benefício próprio. No meu entender, esta é a opinião de muitos nordestinos com relação à figura de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Vou relatar, aqui, algumas opiniões sobre o assunto que nos ajuda a compreender o contexto e que me foram dadas por Isaias (nome fictício) que é guardador de carro no estacionamento de Humanidades da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) há 30 anos. Questionado por mim sobre a quem ele iria dar seu voto no segundo turno, sabendo que ele e família são crentes de uma igreja neopentecostal, Isaias me respondeu: “Bom dia, professor. Parece que fizeram lavagem cerebral na mente das pessoas a ponto de elas não entenderem a verdade. Minha família, graças a Deus, vota em Lula. Não é questão de Lula, é questão de trabalho. O partido é dos trabalhadores. Nós somos trabalhadores e devemos votar em quem zela por isso. Nunca via antes um presidente como Lula. Lula levantou o Brasil quando o país estava se afundando”.

E ele comentou igualmente sobre a candidatura de Bolsonaro. “Os bolsonaristas estão sempre querendo levar vantagem e cada vez mais ricos. Muitas pessoas estão iludidas, até pobres que tem que zelar por quem trabalha. Ele (Bolsonaro) cortou muitas coisas. Até direito de o pobre ter um sindicato que era a força que o povo tinha para lutar por seus direitos”. E sobre as tensões na Igreja ele diz”: estão querendo obrigar a gente a votar neles (nos bolsonaristas). Estão dividindo as famílias. Gente da mesma família brigando um com o outro. Mas a gente sabe em quem devemos votar”. O depoimento de Isaias é bem representativo da opinião dos trabalhadores nordestinos em geral, independentemente de estar ligado à produção ou ao setor de serviços.

O assunto oferece elementos para se pensar o lugar do trabalho em geral, e do trabalho manual, em particular, numa sociedade como a brasileira que vem conhecendo ampla desindustrialização há vários anos, com crescimento paralelo de setores rentistas e extrativistas. Isto tem significado a diminuição dos trabalhadores na produção e o número de pessoas que vivem de atividades especulativas ou que ganham sem trabalhar, sem “suar a camisa” como se diz no ditado popular. De fato, o Estado brasileiro vem deixando de funcionar como um agente que investe na modernização econômica e social. Ele passa a ser um dispositivo político e burocrático voltado para assegurar a exploração extrativista sem compromissos com a organização de uma sociedade inspirada no bem-estar social que assegura a vida democrática. Se analisamos os bolsonaristas, ricos ou pobres, eles são, em geral, indivíduos que vivem de recursos gerados pelo setor público e pelas empresas estatais e pelas rendas arrecadadas pelo tesouro nacional. Os banqueiros (muitos falsos lulistas) que querem manter o banco central no cativeiro para poderem extrair melhor os juros de empréstimos que eles mesmo definem os valores; o agronegócio que busca impor um Estado que subsidie as exportações e que impeça manifestações de trabalhadores nos espaços rurais; os novos acionistas da Petrobrás ligados ao sistema financeiro de Wall Street querem extrair o máximo de lucros da empresa sem considerar sua função social como empresa brasileira.

Os políticos, por sua vez, querem continuar a controlar o orçamento público para atender suas clientelas. Os pastores das igrejas bolsonaristas querem esvaziar as funções ministeriais para melhor gerenciarem os recursos do Estado e promoverem diretamente políticas públicas de saúde, educação e trabalho nos respectivos territórios de ação politico-religiosa nas cidades e bairros (Este é um modelo que lembra muito certos países do Oriente Médio, como o Egito, em que as igrejas islâmicas organizam as políticas públicas em grandes cidades como Cairo, e em que o Estado laico tem sua ação limitada à segurança nacional). A família Bolsonaro e seus seguidores mais diretos vivem também de recursos públicos que são extraídos diretamente ou indiretamente por intermédio de agências de publicidades e redes virtuais e favores diversos com doação de dinheiro público. Isto comprova a tese de presença de amplos setores parasitários dos bens estatais e públicos que atuam contra o mundo do trabalho.

Este é o quadro do Brasil atual

Corremos o risco de perdermos nossa autonomia como país para se tornar um entreposto voltado para exportação de matérias-primas e importador de manufaturados, reiterando uma “vocação” que vem do período colonial. Acontece que este tipo de modelo de sociedade dependente num contexto de 230 milhões de habitantes não pode dar certo. Mesmo um pequeno departamento norte-americano no Caribe como Porto Rico conhece a infelicidade de não ter independência como as demais ilhas da região. A população desta ilha reclama muito do fato de ser tida como cidadãos norte-americanos de segunda classe. A questão social no Brasil é muito grave e somente pode ser resolvida por um amplo pacto voltado para resgatar a centralidade do trabalho. Por isso, Lula é o símbolo da liberdade pelo trabalho.

Então os motivos que levam os nordestinos pobres a votarem em Lula são extremamente pertinentes não somente para os que habitam a região, mas para os brasileiros. Todos precisam se perguntar sobre o país que querem. Pais de arruaceiros ou pais de trabalhadores? Um país dependente do capitalismo rentista internacional associada a grandes oligarquias agrárias? ou um país soberano que valorize o trabalho como valor universal necessário para organizar a cidadania e a democracia? Responder a estas dúvidas deveria ser o dever de classe de todos (as) brasileiros(as) nesta semana pré-eleitoral.

Paulo Henrique Martins é sociólogo, pesquisador 1B do CNPq, professor titular de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex-presidente da Alas (Associação Latino-americana de Sociologia).


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