“Levamos isso como algo normal, nos acostumamos com o preconceito”, diz José Augusto Morales
Uma pessoa muito próxima a mim costumava dizer que o mundo tem pessoas de todos os jeitos, que a beleza está justamente na diversidade. Todavia assumir o diferente pode ser muito difícil e custoso.
Por Eliana Tao*
Uma pessoa muito próxima a mim costumava dizer que o mundo tem pessoas de todos os jeitos, que a beleza está justamente na diversidade. Todavia assumir o diferente pode ser muito difícil e custoso.
José Augusto Morales Subeldia sabe bem disso. O segundo de três irmãos nasceu na Terra das Cataratas e viveu parte da infância nas cidades de Coronel Oviedo e Hernandarias, no Paraguai, em moradias muito modestas. A pouca estrutura e a poluição, somadas à distância de dez quilômetros percorridos diariamente com sua mãe e irmã para levar o almoço para o pai, que trabalhava em uma oficina mecânica, agravaram sua asma crônica, diagnosticada desde cedo.
Para que o tratamento médico do garoto tivesse melhor resultado, a mãe de José Augusto vendeu tudo o que tinha a preço de banana, retornou para Foz e se instalou com a família em uma região da cidade que contribuísse para a melhora da saúde de seu filho. “No geral foi uma infância boa, mesmo com as dificuldades”, avalia.
“Eu era tímido, desde sempre me sentia diferente dos outros meninos”, completa. Engana-se quem pensa que a doença respiratória foi a responsável por limitar sua interação com outras crianças: “Tinha preferência por brincadeiras mais femininas e não ficava à vontade convivendo com guris. Não gostava de futebol, e a maioria das amizades eram meninas”, explica.
Os anos foram passando, e o meninote foi crescendo sem compreender o real motivo de não ser como os demais. A ficha só caiu após os 11 anos de idade: “Senti medo, medo de decepcionar minha família. Do inferno, essas coisas que somos ensinados desde pequenos”, relembra. Por conta desse temor, não compartilhou com ninguém a respeito de sua orientação sexual.
Também se calou sobre situações pelas quais passava no ambiente escolar: “Sofria muito bullying devido a esse meu jeito mais sensível e pelas amizades majoritariamente femininas, mas nunca contei pra minha mãe o que acontecia”, revela. “Por medo e vergonha, para compensar essa situação, me tornei um dos melhores alunos em todos os anos de escola. Assim eu sofria o bullying, mas pelo menos fazia minha família feliz.”
José Augusto viveu um longo período de maneira muito semelhante a um personagem de uma canção do repertório de Laura Pausini: “Se você se esconde como eu. Você escapa dos olhares e você está distante. Confinado no quarto, você não quer comer. Você abraça forte o travesseiro, chora sem saber quanto mal te fará a solidão”. Além disso, esforçava-se para “disfarçar” a homossexualidade tentando ser o mais masculino possível, usando roupas mais discretas, sendo mais reservado para evitar as fofocas: “Foi um período muito difícil, porque vivia uma vida que não era para mim”, desabafa.
Em alguns momentos o empenho surtia o efeito esperado, mas na escola não muito, pois a irmã caçula de José soube de sua sexualidade, porém não por escolha dele: “Ela foi a primeira a saber devido ao fato de na época do colégio ouvir alguns colegas comentando sobre mim e meu jeito, até que um dia ela chegou e me perguntou se eu era gay, e eu respondi: ‘Sim!’”.
A revelação gerou um misto de alívio e receio em José Augusto: “Ao mesmo tempo que era libertador, o medo de sofrer alguma consequência era maior ainda, porque como éramos adolescentes sempre tínhamos nossos desentendimentos, então meu receio era de que falasse algo, mas ela sempre me preservou”.
Quando um expoente do rock nacional dos anos 80 falou com à sua mãe sobre a sua orientação sexual, a revelação aconteceu, digamos, de maneira muito tranquila. Não foi o caso do iguaçuense filho de paraguaios: sentiu amor por seu companheiro assim que o conheceu, porém lhe faltou coragem para dizer “adrenalizou o meu coração”, como fez o cantor e compositor Vitor Kley, tanto que o convite para conhecer a sua morada só foi feito meses depois, aproveitando a proximidade que tinham já como amigos da escola.
Na ocasião José estava certo de que a mãe não estaria em casa: “Durante a estadia dele em casa resolvi beijar ele no sofá, quando de repente minha mãe sai do quarto e presencia a cena”, conta. “Fiquei completamente gelado, sem reação ao passo que ela voltou para o quarto sem falar uma palavra.”
Passada a surpresa pelo inesperado, o adolescente José Augusto pediu para o amigo ir embora, pois temia alguma atitude mais séria da mãe. Em seguida, foi até o quarto com a intenção de tentar explicar-lhe a situação: “Minha mãe disse aos prantos que eu não era mais filho dela e que não queria ver minha cara. Naquele momento meu mundo literalmente acabou”, rememora.
Várias foram as tentativas de pedir perdão à mãe ao longo dos dias, mas sem sucesso, pois Sra. Daniela se isolou no quarto e ficou uma semana sem dirigir uma palavra ao filho. O pai, que se encontrava em viagem ao Paraguai, não fazia ideia do ocorrido.
Sabendo que seu pai estava prestes a retornar e imaginando que ele teria uma reação intempestiva quando soubesse de sua orientação sexual, José Augusto pediu abrigo na casa de seu amigo/colega de escola/namorado. Despediu-se da irmã, contando o porquê de estar saindo de casa, reforçando que jamais perderiam contato.
De malas prontas e prestes a partir, José foi surpreendido mais uma vez: “Minha mãe entrou no meu quarto e simplesmente me abraçou. Tal gesto fez com que eu desabasse no choro. Seguiu dizendo que não aceitava, mas iria respeitar, pois me amava acima de tudo e queria me ver feliz”, recorda, sem conseguir conter as lágrimas.
Sra. Daniela adiou por uma semana a conversa com o marido a respeito da sexualidade do filho procurando o mais tranquilo, o melhor momento para fazer a revelação. A tentativa foi frustrada: “Quando ele soube, nem falou comigo, simplesmente disse que me queria fora de casa. Minha mãe o contrariou, de modo que pediu para minha mãe escolhesse quem ficaria: eu ou ele”.
Optando pelo filho, naquela mesma noite o marido se tornou ex e saiu de casa. Ele queria uma razão para seguir outro caminho afetivo, e a descoberta da homossexualidade de José Augusto foi a deixa perfeita. Levando os poucos recursos e objetos de valor dos quais a família dispunha, ao sair renegou o jovem deixando bem claro que não gostaria mais de saber dele.
Foi um momento que marcou a todos, mas especialmente para a Sra. Daniela, que foi acometida por uma depressão profunda. Com a mudança na composição familiar, José passou a estudar e trabalhar para cuidar de sua mãe e sua irmã.
A pouca idade, a falta de experiência profissional e a grande concorrência por si só são fatores que dificultam a busca por uma oportunidade, porém o mais novo trabalhador teve de lidar com mais um obstáculo: “Na maioria dos meus empregos, eu tive que esconder que sou gay para evitar qualquer tipo de preconceito ou reduzir as chances de não fazer parte do quadro funcional, pois isso já me aconteceu duas vezes”, relata. “Durante a seleção de novos vendedores de uma loja de artigos infantis, comentei com a recrutadora a minha orientação sexual. A mulher tentou disfarçar o desconforto com tal fato, mas deixou estampada em sua fisionomia que não iria me contratar”, completa.
E mesmo fazendo parte da equipe de colaboradores, José Augusto se lembra de situações desagradáveis: “Me sentia muito mal de ouvir colegas tirando sarro ou me julgando devido ao meu jeito. Não sou como sou por escolha, é algo sobre o qual eu não tenho controle”, desabafa.
Questionado se tem vontade de dizer alguma coisa para seus agressores da adolescência, aproveitando que estava rememorando momentos diferentes do passado, José respondeu: “Que reflitam sobre seus atos porque o bullying por eles praticado trouxe muito sofrimento a mim e a outros colegas”. Já para seu pai: “Apenas que perdoo ele, que não guardo rancor. Mas, como perdemos contato, talvez isso nunca aconteça”, lamenta.
Felizmente são águas passadas. José Augusto está feliz tanto no aspecto profissional quanto no pessoal. Aí você que está do outro lado da tela conclui: “Ah, que bom! Levando e tocando a vida como tantos casais mundo afora”. Porém esse raciocínio está parcialmente correto. Isso porque, quando está em locais públicos com o seu marido, José é um rapaz que faz o máximo para “não dar pinta”, como se diz na linguagem popular, algo semelhante ao personagem do ator Malvino Salvador na telenovela global: “Sou o mais discreto possível: não abraço, não pego na mão e nem mesmo beijo. Contudo, às vezes escapa um apelido carinhoso como ‘amor’ ou algo do tipo falando com ele na rua, no shopping. Aí as pessoas começam a olhar estranho, tiram as crianças de perto”, conta.
Muitas vezes é difícil entender tal reação, afinal são duas pessoas “sem maldade, sem medo das coisas, sem preconceito, vivendo em liberdade”, como diz uma canção do repertório da banda RPM. “Infelizmente levamos isso como algo normal. Em outras palavras, nos acostumamos [com o preconceito]”, constata. O cantor e compositor Cazuza seria mais incisivo diante de uma atitude dessas esbravejando: “Senhor, piedade! Pra essa gente careta e covarde. Vamos pedir piedade. Senhor, piedade! Lhes dê grandeza e um pouco de coragem”, sem medo ou receio de que soe exagerado por parte do artista.
Como diria uma pessoa que virou estrela no céu recentemente, o mundo não é mais ou menos pertencente a determinadas pessoas: o mundo é de todos, igualmente. Desse modo, é preciso saber conviver pacificamente, buscando harmonizar e respeitar as diferenças. E não tem fórmula mágica, resposta em buscador na web ou receita secreta: é entender que “o mundão é formado por incontáveis mundinhos”. Se não é a sua, fique de boa no seu mundinho. Bora tentar fazer isso um pouco a cada dia?
* Eliana Tao é jornalista em Foz do Iguaçu e colunista do H2FOZ.