Como passar pela pandemia com práticas agroecológicas e sustentáveis

* Júlio da Silveira Moreira I OPINIÃO

Tão importante quanto evitar o contágio e alastramento do coronavírus, é cuidar das condições imunológicas e psicossomáticas individuais e sociais. Esse entendimento é reforçamento pelo artigo “Melhorar a imunidade em tempos de coronavírus”, do médico imunologista Eduardo Tosta, que tem circulado no aplicativo Whatsapp. Ele enfatiza que, se o sistema imunológico “estiver funcionando adequadamente, a infecção evoluirá sem doença ou com doença leve, como acontece com a grande maioria dos casos; se estiver com seu funcionamento comprometido, a tendência é que a infecção evolua para doença moderada ou grave”. Em seguida, menciona sete medidas que ajudam a manter e fortalecer a saúde imunitária: evitar o medo e o pânico; reduzir a ansiedade; manter um regime de sono regular; reduzir o consumo de álcool, tabaco e drogas; hidratação adequada; suplementação de vitaminas, sais minerais e outros; alimentação saudável com base em nutrientes fortalecedores da imunidade e com atividade antimicrobiana.

O infectologista Marcos Boulos (2019) informou, em entrevista, que o coronavírus é mais frequentemente habitado em animais, e teve os primeiros contágios humanos a partir da ingestão de animais, sobretudo em condições de má preparação. Menciona que houve infecções na China em 2003 e na Arábia Saudita em 2009 a partir de pessoas que comeram frango, e que a epidemia de 2019 na China começou possivelmente a partir de pessoas que comeram frutos do mar.

As medidas profiláticas (de precaução e prevenção contra o alastramento do vírus) já deveriam ser praticadas independentemente da existência dessa epidemia mundial, ou pandemia. Manter as mãos higienizadas, manter a limpeza no corpo e roupas, circulação de ar nas casas e locais fechados, praticar exercícios físicos, hidratar-se com regularidade e cuidar da alimentação, por exemplo, são medidas necessárias para prevenir qualquer doença ou, melhor dizendo, manter um estilo de vida saudável e sustentável.

Muitos de nós nos lembramos da epidemia de cólera no Brasil entre 1991 e 1995. Foi só a partir de então que se formou uma cultura de fazer o que hoje parece óbvio, como lavar os alimentos antes de prepará-los e lavar as mãos antes das refeições e após tocar dinheiro, evitar o consumo de certos alimentos. Por incrível que pareça, essas não eram práticas comuns antes da epidemia de cólera, uma bactéria que atua no intestino e continua contagiando humanos em diferentes lugares do planeta.

Vale lembrar que a Organização Mundial de Saúde, que há alguns dias declarou o estado de pandemia do coronavírus, definiu em sua Constituição, em 1946, que saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Essa definição não só reafirma a ideia de que saúde não se limita a ausência de doença, como também põe em questão a própria definição de doença.

Muitos discursos socialmente reproduzidos sobre a pandemia de coronavírus ainda estão calcados na definição reducionista de saúde como ausência de doença, incluindo o “mito da panaceia”, que Michel Foucault relatou na História da Loucura (1961): a ideia de que a cura está em um elemento externo, e não nos elementos de cura que já estão presentes no indivíduo. Daí surgiu, nos séculos XVII e XVIII, a indicação do ópio para o tratamento de uma série de doenças nervosas, sem considerar as causas e elementos de cura presentes no sujeito: aquilo que chama de espírito vital. Depois desse processo da panaceia (cura por algo exterior, determinada por contextos e rituais socialmente reproduzidos), se chegou na constituição da medicina contemporânea como campo de saber exclusivo e técnico: o domínio clínico.

Em O nascimento da clínica (1963), Foucault mostrava como se operou uma transição no modelo da medicina mundial no século XIX, em que a análise das causas das doenças deu lugar a uma geografia das doenças localizadas: localizar qual o órgão humano que sofre; explicar como esse sofrimento foi gerado a partir de um agente externo; e indicar o que é preciso fazer para curar tal órgão.

Para que a experiência clínica fosse possível como forma de conhecimento foi preciso toda urna reorganização do campo hospitalar, uma nova definição do estatuto do doente na sociedade e a instauração de uma determinada relação entre a assistência e a experiência, os socorros e o saber; foi preciso situar o doente em um espaço coletivo e homogêneo (Foucault, 1977, p. 226)

Muito diferente dessa tendência dominante do conhecimento médico é a atual “Medicina do estilo de vida”, definida como

 uma abordagem científica interdisciplinar que prioriza o uso terapêutico do estilo de vida e envolve apoio na mudança de hábitos para consumir alimentos predominantemente integrais em dieta à base de plantas, manter atividade física regular, cuidar da qualidade do sono, saber estratégias para manejo do estresse, cultivar relacionamentos saudáveis, cessar uso do tabaco e drogas, prevenir abuso de álcool, além de outras modalidades não medicamentosas, para prevenir, tratar e, mais importante, reverter as doenças crônicas relacionadas ao estilo de vida que estão cada vez mais prevalentes.

Embora seja um conceito aparentemente inovador de medicina, muitos conhecimentos ancestrais e históricos da humanidade já traziam esses elementos muito antes da medicina moderna, como a escola de Avicena, na Pérsia, que trouxe respostas para a crise da peste negra que massacrava a população da Europa Ocidental no século XI (fatos históricos relatados no filme O Físico) e a medicina ayurvédica, que está baseada o Yajur Veda, um texto em sânscrito (antecedente da cultura hindu) de tempos imemoriais.

Esses conceitos de medicina retomam o tema da alimentação. Entre os alimentos sugeridos pelo imunologista Eduardo Tosta (que citei ao início), estão limão, cúrcuma, açaí, aveia, gengibre, linhaça, brócolis, uva, amendoim, soja e kefir. Todos esses alimentos são, em maior ou menor medida, encontrados em abundância na natureza, e sobretudo nos quintais, hortas familiares ou comunitárias, assentamentos de reforma agrária e feiras de produtores familiares e agroecológicos: o que ressalta os aspectos eminentemente sociais e ambientais da saúde e da medicina.

O consumo de alimentos sempre foi praticado na humanidade como um tipo de interação social e cultural – o que nos leva ao conceito de bioenergia como interação homeostática de todos os seres vivos e energias imanentes. As plantas medicinais trazem princípios ativos de prevenção e cura, e são encontradas na natureza, não necessariamente como mercadorias, em uma interação bioenergética com os seres humanos, respondendo às condições de saúde que precisam tratar em cada lugar, época ou contexto. Assim também as frutas que aparecem cade uma em seu próprio período sazonal, como o abacate, a manga, a goiaba e a banana. Os alimentos que dão sustentação e massa corpórea, como o milho, a batata,  a mandioca e o trigo, têm sido cultivados por milênios em uma interação harmônica dos humanos na natureza, processo recentemente interrompido com a engenharia biogenética (incluindo os monocultivos e as cultivares transgênicas).

Uma abordagem agroecológica, segundo Miguel Altieri (2004, p. 23), inclui “penetrar no conhecimento e nas técnicas dos agricultores e desenvolver agroecossistemas com uma dependência mínima de insumos agroquímicos e energéticos externos”, restituindo a biodiversidade  e o equilíbrio de todos os elementos, como plantas, solos, nutrientes, luz solar, umidade e microorganismos, e ressaltando o elemento humano: a diversidade cultural relacionada à terra e os conhecimentos tradicionais dos camponeses: “a produção estável somente pode acontecer no contexto de uma organização social que proteja a integridade dos recursos naturais e estimule a interação harmônica entre os seres humanos, o agroecossistema e o ambiente” (Altieri, 2004, p. 27).

O momento histórico e conjuntural que vivemos é privilegiado para analisar mecanismos e tendências sociais em funcionamento há alguns séculos: como relata Foucault, o modelo do domínio clínico e do saber médico exclusivo a partir do século XIX e ainda presente, por mais que a Organização Mundial de Saúde já tenha proposto desde 1947 uma concepção mais holística e integrativa de saúde e uma ressignificação do conceito de doença. Essas tendências em conflito estão presentes nos discursos sociais e políticos sobre a pandemia do coronavírus, dando causa a processos de pânico e ansiedade coletiva e reprodução de crenças sociais, incluindo discursos apocalípticos que há muito tempo permeiam os imaginários sociais, e nem sempre tocando temas fundamentais, como os processos internos e psicossomáticos que determinam o que se pode chamar de “vida saudável” e o modelo atual insustentável de produção e consumo de alimentos.

Referências

ALTIERI, Miguel. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 4. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
BOULOS, Marcos. Entrevista sobre o coronavírus. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mp_Xc6LzfH8>. Acesso em 14 mar. 2020.
CBMEV (Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida). Disponível em <www.cbmev.org.br>. Acesso em 14 mar. 2020.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.
_____. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978.
OMS (Organização Mundial de Saúde). Constituição. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. Universidade de São Paulo. Disponível em: <www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em 14 mar. 2020.
TOSTA, Eduardo. Melhorar a imunidade em tempos de coronavírus. Perspectiva sociológica. Disponível em: <blogdodijaci.blogspot.com/2020/03/melhorar-imunidade-em-tempos-de.html>. Acesso em 15 mar. 2020.

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