“Somos mais que 108”. Gays paraguaios têm número de ódio como símbolo

Intolerância contra LGBT no Paraguai recrudesce com conservadorismo na política.

Praticamente em país nenhum a vida de um homossexual ou transexual é mais fácil que a de um heterossexual. Mas é muito mais difícil num país conservador. E é impossível em alguns, como o Sudão, o Irã, o Afeganistão e outros de radicalismo religioso, onde o homossexual é condenado à morte.

Na África, há 33 nações onde é ilegal ser gay, e em 24 deles a lei se aplica a mulheres; na Ásia, são 23 países, em 13 dos quais a lei se aplica a mulheres. Nesses países, homossexualidade pode gerar prisão.

Países atrasados? Sim, até no tempo. Mas vale lembrar que, até 1967, a homossexualidade era crime passível de prisão na Inglaterra e no País de Gales. 

Mas fiquemos em países conservadores, onde homossexualidade não é crime, mas a tolerância contra gays, transexuais e assemelhados é mínima. É o caso do Paraguai (pior que no Brasil, embora seja só questão de nível “hierárquico”).

A agência Reuters chegou a fazer matéria sobre homossexualidade no Paraguai, transcrita no jornal Última Hora, de Assunção. 

Com o título “LGBT se sente cada vez mais vulnerável no conservador Paraguai”, a reportagem, assinada por Daniela Desantis, lembra que o país não tem leis contra discriminação sexual nem reconhece união entre pessoas do mesmo sexo (o que é lei no Brasil, Argentina e Uruguai, pra ficar só no Mercosul).

O conservadorismo vai além, no Paraguai. O Ministério da Educação tirou de circulação um guia sobre educação sexual voltado aos professores e o Senado se declarou “pró-vida e pró-família”. Aborto? Só quando a mulher corre risco de vida.

Explica-se, portanto, porque vários senadores se retiraram do plenário, no ano passado, quando o Congresso paraguaio prestou homenagem ao filme paraguaio mais premiado da história, “As herdeiras”, que mostra a vida (em crise) e o relacionamento de duas mulheres de meia idade, de classe alta.

As associações LGBT do Paraguai recebem frequentes denúncias de familiares que agridem adolescentes e jovens lésbicas e de mães que são ameaçadas de perder a guarda dos filhos por ter uma mulher como parceira.

“O contexto e a lógica do Estado para com a população LBGT é a mesma lógica que tinham na ditadura, é exatamente o mesmo tipo de política”, disse à Reuters Simón Cazal, diretor executivo da organização SomosGay.

“Os veados (putos) não existem no Paraguai, essa é a frase que resume a visão que o Estado paraguaio tem sobre a população que não é heterossexual”, disse ainda Cazal.

Os 108

Durante a época da ditadura do general Alfredo Stroessner, a repressão obrigava os homossexuais a manterem relações em segredo sob risco de expulsão do núcleo familiar, demissão do trabalho ou serem capturados pelas forças de segurança pública, onde teriam seus direitos violados em todos os níveis.

E aqui vem a história do número 108, hoje símbolo gay no Paraguai. Em 1959, o locutor e bailarino Bernardo Aranda (foto ao lado), muito conhecido em Assunção, foi assassinado e teve o corpo queimado.

Como era homossexual, a polícia do regime ditatorial simplesmente deduziu que o crime era passional, cometido por outro homossexual. E passou a prender pessoas “de duvidosa conduta moral”, que foram submetidas ao escárnio público.

Exatamente 108 pessoas foram presas. Nunca ficou provado nada contra nenhuma delas, e até hoje o crime continua sem esclarecimento.

A partir dali, os paraguaios passaram a associar o 108, de forma pejorativa, à homossexualidade. Por isso, nunca mais foi utilizado em placas de automóveis, em telefones e na numeração de casas e apartamentos. 

Isso persiste até hoje, embora a maioria da população paraguaia já não saiba mais a razão. O preconceito não diminuiu, o que houve foi que a memória coletiva perdeu-se ao longo do tempo. No caso, ainda bem.

E o 108 virou bandeira.

Foto Última Hora (arquivo)

Cura gay

A organização SomosGay assegurou à Reuters que há registro da existência de “centros de reabilitação” clandestinos que propagam a “cura da homossexualidade”. Um deles funciona na inóspita região do Chaco e outro na periferia de Assunção.

Embora a agência Reuters não tenha conseguido confirmar a existência destes centro, a reportagem ouviu a senadora opositora María Eugenia Bajac, autora do projeto para declarar o Senado 'pró-vida e pró-família”, que se disse “encantada” de existirem estabelecimentos deste tipo no país.

“Devemos tratar esse desvio, ou essa inclinação, ou essa tendência, ou esse estilo, escolha sexual, qe a pessoa possa ter (…); pode-se curar, voltar a que seja reto e tenha a identidade correta de um ser humano”, disse a senadora.

Trans

Um dos grupos mais vulneráveis da comunidade LGBT paraguaia é o das pessoas trans. A organização Panambí tem documentados centenas de casos de violência contra essas pessoas, a maioria por parte de agentes policiais, e 61 assassinatos nas últimas três décadas.

Poucos desses casos foram esclarecidos. Três, para ser exato, em que os autores confessaram os crimes. O resto é tratado com descaso pela polícia.

Fontes: Reuter, Última Hora e Agência Presentes

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