Comerciantes sofrem pressão para sair de quadra da antiga Santa Casa

Donos de lanchonetes há décadas no local são notificados pelo município para encerramento imediato das atividades; incorporadora construirá empreendimento no terreno.

Donos de lanchonetes há décadas no local são notificados pelo município para encerramento imediato das atividades; incorporadora construirá empreendimento no terreno.

Reportagem: Alexandre Palmar – H2FOZ
Vídeos e fotos: Marcos Labanca

Resumo da notícia:
* Comerciantes sofrem pressão para sair de quadra da antiga Santa Casa
* As idas e vindas do terreno gigante no centro da cidade
* Prefeitura notifica comerciantes para saída “imediata do local”
* Outro lado – o que diz a Prefeitura de Foz do Iguaçu
* Advogado vê falta de isonomia em ação da Secretaria da Fazenda
* Empresa também envia notificações extrajudiciais
* Outro lado – o que diz a Wust & Casarotto
* A luta por trabalho digno na “terceira idade”
* Mas e o valor do acordo?


Dois pequenos comerciantes estão sofrendo pressão para abandonar as suas lanchonetes existentes há cerca de 35 anos na quadra da antiga Santa Casa de Misericórdia Monsenhor Guilherme. A Prefeitura de Foz do Iguaçu exige a saída dos estabelecimentos para liberar as calçadas no entorno do terreno onde será construído um empreendimento milionário.

É uma disputa desproporcional em meio a uma história de trabalho, dignidade e sobrevivência, envolvendo Rubens Pereira, 65 anos, e sua esposa, Ana Dirce Machado, 60; e Ivanir Franco Pereira, 62, e seu marido, Pedro Claudio Pereira Dias, 83. Dois casais que edificaram a vida e criaram seus filhos com a renda do comércio – desde sempre vizinho de muro do hospital.

É só passar pelo local para perceber algo estranho no ar. O contraste é brutal. Após a demolição da estrutura abandonada, no terreno de 16 mil metros quadrados restam apenas escombros e tocos de árvores mortas. De pé somente um pórtico preservado em nome da memória dos pioneiros e as duas lanchonetes: uma na esquina da Avenida Brasil com a Rua Padre Montoya e outra na Rua Benjamin Constant.

Mas é só tomar um cafezinho e comer um pastel no balcão (semelhante aos modernos trailers de food truck) para descobrir que atrás do resquício de muro da Santa Casa Monsenhor Guilherme estão duas famílias que atenderam médicos, enfermeiros, pacientes e provedores do hospital, além de toda a vizinhança. Um trabalho honesto. Tudo dentro da lei.

Em tom de desabafo, os comerciantes apresentaram ao H2FOZ as matrículas de alvarás, água, luz e um calhamaço de notificações exigindo a retirada das lanchonetes. Mais recentemente começaram boatos sobre possíveis multas por parte do governo Chico Brasileiro (PSD). Da construtora, notificações extrajudiciais para “desobstruir” o pedaço do muro utilizado pelos dois estabelecimentos. O saldo disso tudo até agora? Tentativas de acordos fracassados e um fio de esperança.

“Será que o olho do ser humano não olha isso aí. Pô, tô abaixo de pressão aqui. Aqui está a mil, a mil… Não sei como estou sobrevivendo. Baixei uns 10, 15 quilos. Eu pesava 70 quilos, agora estou com 50 quilos. Estou sendo ameaçado. Sei que há lei para todo mundo, para o rico e para o pobre. Então quero ver se existe lei. Se realmente o pessoal olha o lado baixo e o lado alto. Ou se só estão vendo o lado alto e o lado baixo deixa ser pisado!”
Rubens Pereira, 65 anos


Lanchonetes foram construídas com aval da prefeitura e conselho curador da irmandade

Lanchonete da senhora Ivanir Franco Pereira, localizada na Rua Padre Montoya – Foto Marcos Labanca


Mas como dois comércios foram construídos colados no muro? As histórias dos pontos comerciais são parecidas, ambas com doses de humanização e aval legal das autoridades da época. Dois negócios com direito a alvarás renovados ano a ano até então e serviços de água e luz legalizados. Para entender o caso, é preciso voltar um pouco no tempo. Tentar imaginar a Foz do Iguaçu nos anos 1940 e décadas seguintes.

A Santa Casa foi fundada em 1938, ainda com instalações tímidas. Com o passar do tempo, a infraestrutura hospitalar ganhou corpo e ocupou praticamente toda a quadra entre a Avenida Brasil e as ruas Padre Montoya, Benjamin Constant e Antônio Raposo. E nesse contexto surgiram os dois pequenos negócios, com autorização dos prefeitos da época para ocupar a via pública e da direção do hospital para utilizar o muro como parede de fundo das lanchonetes.

Nascido em Foz do Iguaçu, o senhor Rubens Pereira conta que trabalhava de garçom e na hotelaria (por muitos anos no Hotel Salvatti), porém sofreu um acidente e não conseguiu mais exercer a profissão. Foi então que buscou viabilizar um serviço com menos esforço físico e pediu ajuda para obter autorização e montar o negócio na Rua Benjamin Constant e assim sustentar a família – esposa e três filhos pequenos.

“Fui até a prefeitura e pedi um lugar para colocar essa barraca onde estou hoje, e me deram alvará. Inclusive o pessoal da Santa Casa ‘me ajudaram’ muito na época [o ano era 1987]. O [Cesar] Cabral, o Emerson Wagner e o seu Antonio Bordin sempre me ajudaram [os citados foram empresários, provedores e membros do conselho curador da Irmandade Santa Casa Monsenhor Guilherme]. Aí eu pedi para seu Campana [Dionísio, ex-diretor do hospital] se ele me concederia colocar a barraca onde aqui estou. O seu Campana falou: ‘Depois do muro você pode colocar, não tem problema nenhum’. Essa é a minha história aqui da barraca.”

Residente em Foz do Iguaçu desde 1970, ou seja, há 52 anos, Ivanir Franco Pereira também compartilhou com a reportagem do portal os seus desafios em relação ao sustento familiar. Ela revelou que a lanchonete na Rua Padre Montoya existe há mais de 50 anos. O ponto comercial era de outra pessoa, quando o marido o comprou faz 33 anos. Com o avançar da idade do senhor Pedro Dias, a esposa assumiu as atividades do dia a dia, como a produção e venda de lanches e doces, além de revenda de refrigerante e água.

VIDEODEPOIMENTO – Rubens Pereira


As idas e vindas do terreno gigante no centro da cidade

A Santa Casa Monsenhor Guilherme decretou falência em 2006, deixando desempregados mais de 400 funcionários e uma dívida de R$ 15 milhões. Anos depois, o Grupo Diplomata, do ex-deputado Alfredo Kaefer, adquiriu a propriedade, entretanto acabou declarando recuperação judicial. Em 2019, o prédio foi a leilão e acabou arrematado por R$ 7 milhões pela empresa Bordin Administração e Incorporação Ltda.

Por fim, a Bordin vendeu o imóvel para a Wust, Casarotto & Cia Ltda., de Cascavel (o valor, certamente milionário, não foi revelado). A nova proprietária anunciou um megainvestimento para a construção de edifício comercial, empresarial, hoteleiro e residencial no imóvel. A demolição de toda a infraestrutura está concluída (ou quase). Falta resolver a questão dos resquícios de muro nas ruas Padre Montoya e Benjamin Constant.

Prefeitura notifica comerciantes para saída “imediata do local”

“Todo ano a gente está tranquilamente trabalhando, pagando o alvará. Tenho pago o alvará até 2023. E agora eles querem que a gente saia porque venderam o terreno da Santa Casa, e eu não tenho nada a ver com o terreno da Santa Casa. Eles dizem que eu estou usando o muro da Santa Casa, por isso teria que sair, e aí eu falei que faria uma parede para dentro e eles poderiam quebrar o muro que é deles. Vou construir outro muro para dentro.”
Ivanir Franco Pereira, 62 anos

Enquanto ainda garantem o ganha-pão do dia a dia, Ivanir e Rubens exibem com orgulho as matrículas do alvará social, água e luz. Na frente de um comércio de 34 metros quadrados, a senhora mostra a renovação do seu alvará social até agosto de 2023. Rubens também sempre trabalhou legalizado em sua lanchonete de 20 metros quadrados, mas quando tentou renovar sua licença, no passado, percebeu o calvário que se iniciava. Aqui as histórias se entrelaçam novamente.

Os dois estabelecimentos não estão no terreno de 16 mil metros quadrados – hoje de propriedade da Wust, Casarotto & Cia Ltda. Os negócios estão na via pública e não atrapalham a faixa de pedestres. Para ser mais exato, estão naquilo que seria o canteiro entre o muro e a calçada. Situação semelhante à de outras dezenas de pontos comerciais formais do município, que, aliás, está acostumado a cadeiras e mesas sobre as calçadas em vias gastronômicas e até mesmo parklet em áreas de estacionamento.

De uns tempos para cá, contudo, começou a tormenta para o senhor e a senhora, mais ou menos em períodos parecidos. Em 20 de agosto de 2021, por exemplo, seu Rubens recebeu um aviso da Secretaria Municipal da Fazenda de Foz com a seguinte ordem: “Fica ciente que deverá se retirar do local no prazo de 30 dias pois o proprietário do local está executando uma reforma no imóvel.” Reforma seria o anúncio da demolição, que iniciaria três meses depois, em novembro.

Com o último alvará expirado em junho de 2020, o comerciante deu entrada na renovação da licença (assim como fez em anos anteriores), só que teve o pedido negado. Ele insistiu, abriu processo em janeiro deste ano, recorreu com ajuda de um advogado, entretanto o requerimento foi negado pelo gestor público. “Eu sempre paguei meu alvará, mas quando eu fui solicitar novamente meu alvará eles me negaram”, disse.

Já Dona Ivanir enfrenta uma situação tão problemática quanto. Renovada em agosto de 2021, sua licença é válida até 24 de agosto de 2023, mesmo assim ela recebeu, em 22 de março passado, uma notificação da Secretaria Municipal da Fazenda exigindo a saída do local. Diz o documento, guardado entre tantos outros papéis: “Deverá encerrar as atividades de imediato e retirar o trailer do local.”


VIDEODEPOIMENTO – Ivanir Franco Pereira

Outro lado – o que diz a Prefeitura de Foz do Iguaçu

Diante do histórico de notificações e reivindicações por direitos, o H2FOZ questionou a Prefeitura de Foz do Iguaçu sobre os casos de Rubens Pereira e Ivanir Franco Pereira. Em relação à negativa para renovação da licença dele, a resposta foi: “A Secretaria Municipal da Fazenda informa que o alvará social mencionado não foi renovado justamente por já existir a notificação para o encerramento das atividades no local e retirada da barraca.”

Quanto à situação da senhora: “A barraca da comerciante mencionada está instalada em passeio público da Rua Padre Montoya. Foi solicitado à Prefeitura Municipal, através dos processos 26.281/2021 e 26.285/2021, a retirada das barracas instaladas no passeio público do imóvel do requerente, pois proprietário do imóvel está em processo de construção no local e as barracas irão atrapalhar as obras, uma vez que utilizam parte do muro da propriedade.”


Advogado vê falta de isonomia em ação da Secretaria da Fazenda

Vizinho de Rubens Pereira, o advogado Jose Albery de Vasconcelos ficou sensibilizado com o drama e assumiu a defesa do comerciante, num primeiro momento para obter a renovação do alvará social do cliente. Soube, então, que o prefeito Chico Brasileiro apresentou, em setembro de 2021, projeto de lei para revogar a Lei 3.098/2005 (que legalizava a modalidade de licença). Os vereadores acataram o pedido do Executivo naquele mês.

Permanece, todavia, outra linha da defesa. “O poder público, quando toma uma decisão, precisa ser motivado. É o chamado princípio da motivação dos atos. A prefeitura, ao exigir as retiradas das barracas, favorece um terceiro”, completou. Segundo ele, há também os princípios constitucionais da impessoalidade e da isonomia. “O caso do senhor Rubens está relacionado com os direitos dos demais aqui nas cercanias, daqueles que têm suas barracas e funcionam os seus comércios”, argumentou o advogado.


Empresa também envia notificações extrajudiciais

Além de visitas dos fiscais da prefeitura, os dois comerciantes receberam notificações extrajudiciais da Wust, Casarotto & Cia Ltda., por meio do escritório jurídico São Pedro Zanforlin Advogados. Os dois documentos foram emitidos em 6 de junho de 2022 e pedem a desobstrução do muro, considerando que a empresa obteve do município licença de demolição completa do imóvel da antiga Santa Casa – incluindo o muro.

O documento reforça que o muro é de propriedade da Wust, Casarotto & Cia Ltda. e que os comerciantes fazem uso irregular dele. “Buscou-se conversa amigável para solução da questão, esta que restou inexitosa. Não obstante, a notificante não faça qualquer oposição ao comércio da notificada, desde que constituído de forma regular (…). Desta forma, a notificante se serve da presente para notificá-la a desobstruir o muro de propriedade no prazo máximo de 20 dias contados do recebimento da presente, sob pena de serem tomadas as medidas judiciais cabíveis.”

Outro lado – o que diz a Wust & Casarotto

O H2FOZ entrou em contato com a Wust & Casarotto Construtora e Incorporadora com o objetivo de entender melhor as tentativas de negociação entre as partes para fechar um acordo amigável. Basicamente perguntou-se: “O que impede os atuais proprietários do terreno de atender ao pedido dos dois comerciantes? É possível chegar a um acordo bom para as ambas as partes? Como?” O escritório jurídico, em nome do cliente, respondeu:

“Em resposta aos questionamentos, informamos que o direito de todas as partes está sendo respeitado em conformidade com a legislação vigente. Houve tratativas, porém até o momento sem êxito. Em atenção à notificação mencionada, informamos que a enviamos em razão das lanchonetes estarem se utilizando de muro de nossa propriedade e que precisa ser demolido conforme alvará concedido pela prefeitura de Foz do Iguaçu. Por fim, a proprietária informa que preza – e sempre prezou – pela boa convivência com a população iguaçuense e com os proprietários das lanchonetes, não tomando nenhuma medida até o presente momento por tal motivo.”


A luta por trabalho digno na “terceira idade”

Tanto Rubens Pereira, 65 anos, quanto Ivanir Franco Pereira, 62, são taxativos em dizer que querem apenas trabalhar para garantir o sustento de suas famílias. Uma das soluções para o impasse seria o governo municipal garantir uma alternativa de negócio para os comerciantes, talvez “viabilizando” a transferência dos trailers para outro ponto comercial com bom fluxo de pessoas.

“Eu quero trabalhar. Não estou pedindo financeiramente nada. Quero que eles me deem um local para trabalhar. Caso contrário, tudo que vier seja bem-vindo. Se de repente eles querem fazer um acordo comigo, eu estou disposto. Não vou bater o pé. Jamais. Eu não vou falar: ‘Não, eu não vou sair’. Mas não vem me prejudicar. A quantia que eles ofereceram aí é muito pouco. Não tem como aceitar. Eu diria que isso daí já é falta de respeito com a gente”, afirmou Rubens.

Dona Ivanir tem pedido semelhante “ao vizinho”. Ela solicita especificamente a viabilização de um estabelecimento comercial ao lado da residência dela. “Me deixem. Eu quero mesmo é trabalhar. Mas se eles não querem que a gente trabalhe mesmo, eles me indenizem. Me deem outro local. Eu gostaria de outro local para eu trabalhar. Eu não posso parar de trabalhar. Do que eu vou viver?”, questionou a senhora.

Mas e o valor do acordo?


Essa não é uma história sobre o valor da indenização a ser pago para dois pequenos comerciantes que estão trabalhando no mesmo lugar há cerca de 35 anos. Talvez seja apenas mais um capítulo dos dias de glória da Santa Casa Monsenhor Guilherme e do seu fim melancólico, repleto de injustiças com os seus mais de 400 funcionários – que de 2006 até hoje aguardam o pagamento dos seus direitos.

Porém, para que não sobrem dúvidas sobre os montantes em questão, vamos lá. Na época da Bordin Administração e Incorporação Ltda. foi oferecido o valor de R$ 5 mil ao senhor Rubens Pereira para ele sair do local (pago em duas vezes). A proposta da Wust, Casarotto & Cia Ltda. teria sido um pouco maior, porém ainda bem aquém do requisitado pelos comerciantes. Dona Ivanir é direta ao dizer o valor, pede R$ 60 mil. Com a voz embarga, seu Rubens solicitou só “algo de respeito”.

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