*ESTE TEXTO CONTÉM REVELAÇÃO DE ROTEIRO (SPOILER)
H. P. Lovecraft foi um escritor estadunidense que revolucionou o gênero de terror atribuindo-lhe elementos fantásticos típicos dos gêneros de fantasia e ficção científica. Foi a inspiração de Stephen King. Enquanto para o primeiro o horror está lá fora, para King ele está em nós. Não existe fã sério de terror que não cultue ao menos um dos dois. Mas esse debate é para outro momento.
Em “Lovecraft Country” (HBO, 2020), temos os dois elementos: o horror que vem de fora e o terror em nós. “Estamos cercados de monstros!”, fala Atticus, um dos protagonistas da série.
“Atticus (Jonathan Majors), veterano da Guerra da Coreia, retorna para sua Chicago de origem, onde descobre que seu pai, Montrose (Michael Kenneth Williams, de The Wire) está desaparecido. Junto com seu tio George (Courtney B. Vance) e sua amiga de infância Letitia (Smollett), parte em busca de Montrose, enfrentando monstros humanos e literais em sua viagem. Letitia é uma fotógrafa que acabou de chegar a Chicago, é ativista pelos direitos civis e cheia de vida. Jurnee Smollett conversou com o site de VEJA sobre a série, uma das melhores da temporada, racismo, raiva ancestral e empoderamento feminino” – trecho de resenha publicada pela Veja.
Após o estrondoso sucesso das 15 (!!!) temporadas de Supernatural (série que após a segunda temporada mostrou como os fãs conseguem destruir uma história que poderia ter terminado com dignidade e não se estendido numa infinitude de arcos e roteiros ruins) ficou o vácuo do debate sobre representatividade no cinema, pois em nenhum momento tivemos na série certo protagonismo negro, sequer coadjuvante. Houve sim algumas inserções femininas e LGBTQIA+, mas de forma muito artificial e sem debate. Não que o entretenimento tenha que debater, mas a questão que a moda hoje é essa: representatividade no entretenimento de massa no capitalismo.
A Netflix bem que tentou, produziu duas excelentes séries originais de terror com protagonismo negro, de excelente qualidade de produção e direção: “October Faction” e “Superstition”. Séries que debatem a questão racial e de gênero, sem entrar muito no corte de classe como é de se esperar de qualquer produção identitária da Netflix. Porém nenhuma delas teve sequência.
A HBO no entanto conseguiu lograr um feito, uma série de terror que concilia excelente roteiro (adaptação da obra de Matt Ruff), direção, produção e de quebra consegue debater racismo, machismo, homofobia e, não é de se admirar, esquece por completo de debater a questão de classe, pobreza e exploração do trabalhador.
E cancelou a segunda temporada mesmo com protesto dos fãs…
Em “Lovecraft Country”, brancos racistas, homens e mulheres homofóbicos e gays guardados em armários, constituem famílias e espancam seus filhos. A fórmula de como criar monstros.
A vilã principal é uma mulher branca que busca imortalidade e provar que mulheres podem fazer o mesmo que homens. Ela não é racista em si, mas como mulher rica pouco se importa com o contexto social em seu entorno. Dos monstros da série ela é a mais sincera e pura.
O monstro é toda uma nação, um Estados Unidos segregacionista.
Cada episódio é uma proposta de debate. Mas o ritmo embala e leva a gente a assistir todos os dez episódios numa leva só.
Para quem quer outras produções de terror que debatem racismo e preconceito temos também “Penny Dreadful: Cidade dos Anjos” que coloca a questão latina nos EUA.
As bandeiras identitárias não retrocederão. Hoje, grupos raciais e de diversidade de gênero já dominam o mercado. O que não avança nas mídias e no entretenimento é o debate de classe, aquele debate que importa tanto quanto os outros, o da opressão e da exploração da classe trabalhadora. Afinal, mesmo que o racismo esteja sendo combatido, tal efeito não alcança a mulher negra trabalhadora, que está na base da pirâmide da opressão.
Fica aqui a dica para fãs de terror e política. Também a reflexão de que pior que o terror do desconhecido é o terror dentro de nós que faz mal ao outro.
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