Com a divulgação do Falatório, objetivo é reconstruir a história da poeta carioca e compreender o que ela representa para a cultura brasileira.
Pela primeira vez, a íntegra dos áudios de Stella do Patrocínio foi disponibilizada para acesso ao público. O Falatório, como ficaram conhecidas as falas de Stella, está disponível para download no Repositório Institucional da UNILA.Lembrada por sua poesia, a obra escrita de Stella do Patrocínio é o resultado de transcrições de gravações realizadas enquanto ela era interna em uma instituição de saúde mental do Rio de Janeiro, onde passou mais de 30 anos de sua vida. O único livro de sua autoria – Reino dos bichos e dos animais é o meu nome – foi publicado em 2001, quase 10 anos após sua morte. Agora, com a liberação dos áudios, o objetivo é resgatar a oralidade na sua obra e reconstruir a sua história.
A disponibilização dos áudios de forma aberta e gratuita é um dos resultados da pesquisa de Sara Martins Ramos, mestra em Literatura Comparada pela UNILA. Em sua dissertação, Sara critica a construção da figura de Stella ao longo dos anos. “Esta pesquisa surgiu a partir de um incômodo. Fui me incomodando com várias coisas que lia sobre Stella, principalmente nos círculos acadêmicos e literários. Eu senti que precisava fazer um trabalho que analisasse por que a Stella era apresentada dessa maneira e a que interesses essa construção atendia”, explica.
Os áudios foram repassados pela artista plástica Carla Guagliardi, responsável pelas gravações nos anos 80. A dissertação foi orientada pelo professor Andrea Ciacchi. Os áudios e o trabalho de pesquisa podem ser acessados por meio do link https://bit.ly/Falatorio.
A mulher que vemos, mas não ouvimos
Para entender quem foi Stella do Patrocínio, é necessário juntar as peças e fazer um paralelo entre a história oficial, registrada pelas instituições, e a história que a própria Stella conta, descrita em seu Falatório. “É muito difícil contar a vida de Stella, porque a maior parte das informações veio da instituição manicomial, a mesma instituição que cerceou sua vida. Então a gente questiona até que ponto essas informações são fidedignas e foram registradas de boa-fé”, indaga Sara Ramos.
Carioca nascida em 1941, Stella era uma mulher negra que trabalhava como doméstica e estudava. “Algumas pessoas colocam a Stella como uma mulher analfabeta, mas sabemos, pelas pesquisas de campo mais recentes, que ela gostava muito de estudar e que ela trabalhava como doméstica enquanto estudava, para ver se conseguia um trabalho melhor”, relata Sara, que citou os estudos de Anna Carolina Zacharias (Doutorado em Teoria e História Literária/ Unicamp), que investigou a história de Stella junto com os parentes que ainda estão vivos. Aos 21 anos, em 1962, Stella do Patrocínio foi presa pela polícia enquanto caminhava com um amigo em direção a um ponto de ônibus. Ela foi encarcerada em um contexto de forte repressão ao que se chamava de “vadiagem” ou, como coloca Sara Ramos em sua dissertação, “um pretexto para abdução arbitrária de corpos pretos circulando no Rio de Janeiro”. Após a prisão, Stella foi encaminhada, pelas autoridades policiais, para uma instituição de saúde mental. Diagnosticada com esquizofrenia, viveu até a sua morte, em 1992, na Colônia Juliano de Moreira.
De 1986 a 1988, os internos da Colônia participaram de oficinas de arte organizadas pela artista plástica Carla Guagliardi. Foram essas gravações que lançaram luz sobre a poesia e filosofia das falas de Stella e permitiram conhecer sua vida para além do que está registrado nos órgãos oficiais. A partir dos áudios – que até março de 2022 sempre foram divulgados em trechos, nunca na íntegra – foram organizadas exposições, peças teatrais, intervenções culturais, além do próprio livro atribuído a Stella.
Publicado em 2001, o livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome permitiu que a poeta se tornasse conhecida nacionalmente mas, ainda assim, mostrou uma Stella muito diferente da que pode ser conhecida pelos áudios, ignorando, por exemplo, as violências que ela sofreu ao longo da vida. “Essa Stella apresentada no livro, além de ser uma Stella louca, é uma Stella desracializada e descorporificada. Mas [nos áudios] eu não escuto uma Stella intrinsecamente louca. Eu escuto uma mulher que foi adoecida por uma instituição, que foi aprisionada porque era um corpo negro que estava andando na rua com seu amigo Luiz e, a partir dali, foi encarcerada pelo resto da vida”, defende Sara. Para a pesquisadora, os problemas no texto vão além das perdas comuns em qualquer transcrição. Muitas falas foram desmembradas, excluídas e, inclusive, foram acrescentados textos que não são originais de Stella do Patrocínio. “Essa construção da imagem lembra muito Carolina Maria de Jesus e outros textos de mulheres negras que são manipulados por uma narrativa. Precisamos questionar que narrativa é essa. A quem essa narrativa atende. É todo um processo de mutilação que é muito comum de toda a lógica colonial da nossa sociedade”, questiona.
Sara Ramos, que é graduada em Produção Editorial (UFRJ), sustenta que as falas de Stella do Patrocínio foram desmembradas, entre outros motivos, para a produção de poemas que atendessem à lógica dos círculos literários. “Não é que eu não ache que a Stella não tem poesia. Ela tem poesia, tem filosofia, tem uma intelectualidade imensa. Ela construiu uma etimologia própria para falar não só dela, mas que fala da gente, das instituições que endossamos, do colonialismo, do que é ser uma mulher negra. E não é isso que lemos nas páginas do livro. Agora, com os áudios, temos uma nova oportunidade para respeitar suas palavras”, diz.
Acerto de contas
A divulgação do Falatório na íntegra cumpre um papel de reverter os processos de apagamento e de apropriação da história de Stella do Patrocínio, além de ser uma nova fonte para compreender o que ela representa para a cultura brasileira. “O trabalho e o esforço intelectual e afetivo dos povos pretos não podem permanecer apenas na mão de especialistas e acadêmicos majoritariamente brancos. Minha expectativa é que as gravações abram caminhos para uma nova profusão de textos e trabalhos que agora poderão circular trazendo uma nova onda de acerto de contas”, enfatiza a pesquisadora.
Sara também espera que Stella seja cada vez mais reivindicada como uma figura importante para a cultura negra e a cultura brasileira de forma geral. “O que importa é que ela esteja circulando, em ensaios, em peças teatrais, em exposições, nas rodas de samba, nas conversas de bar. Que ela continue circulando, porque ela sempre gostou de circular pelas ruas da cidade”.
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